terça-feira, outubro 24, 2006

Ainda que eu ande pelo vale...


"Ainda que eu ande pelo vale da sombra da morte,
não temerei mal nenhum porque tu estás comigo;
a tua vara e o teu cajado me consolam".
Salmo 23.4

Certo pastor escreveu em seu diário, por ocasião do falecimento de sua esposa: "não se pode pensar que passaremos a vida pulando de um para outro cume das montanhas, como se não houvesse vales entre elas".
O salmo 23 é a produção de uma alma que se descobriu qual ovelha que tinha por Pastor o próprio SENHOR. Nele, o escritor, que também é pastor desses frágeis animais, descreve a caminhada das ovelhas sob os cuidados de um bom pastor.
É característico desse animal ser dependente dos cuidados pastorais. O salmista fala de si como ovelha que encontrou no SENHOR o pastor que nada lhe deixa faltar. Num olhar amplo da vida percebe que de nada passou necessidade.
Entretanto, tal afirmação não implica, de modo algum, que a vida de uma ovelha conhece apenas pastos verdejantes e águas de descanso. Há também os vales. Passar por eles proporciona à ovelha uma experiência singular que ela não teria se não descesse ao vale.
Alguns aspectos da passagem pelo vale são notáveis e diferenciadores em relação aos outros lugares por onde o pastor conduz as suas ovelhas. Um deles é o fato de que as ovelhas passam pelo vale porque seu pastor as conduz para lá. É o vale uma trajetória tão certa na caminhada das ovelhas, quanto o são os cumes das montanhas, os pastos verdejantes e as águas tranqüilas. Mas, afinal, por que razão um pastor tiraria suas frágeis e dependentes ovelhas dos pastos que se encontram em lugares planos e altos – tão seguros, aquecidos e iluminados?
O fato é que nos vales é que se encontram as águas mais frescas e mais abundantes e a relva mais viçosa. Águas e alimento que se tornam ainda mais desejáveis após o esforço da caminhada – o exercício que tornará as ovelhas ainda mais fortes e mais preparadas para enfrentar situações difíceis. Todavia, para chegar a essas desejáveis águas frescas e abundantes, o já tão cuidadoso pastor, dobrará a vigilância. Ali são especialmente necessários o cajado e a vara. Se o cajado confere à ovelha a sensação de segurança por ser o instrumento que pastor utilizará para ajudá-la a sair de algum buraco ou do meio de um espinheiro em que, porventura, ela cair, a vara, por outro lado, é instrumento de disciplina e correção. Mas, tanto o cajado quanto a vara são vistas pela ovelha como figuras de fortalecimento e confiança: "tua vara e o teu cajado me consolam". Eles ensinam que, no vale, não se pode descuidar. Há perigos, há espinheiros, há valas que podem matar. Há atrativos que podem enganar e levar a ovelha por caminhos onde há riscos escondidos, perigos camuflados. Ao passar pelo vale, a ovelha experimentará que ali é um lugar de disciplina e vigilância redobrada. A vara e o cajado lhe ensinam essa verdade.
Outro aspecto notável dessa parte da caminhada de uma ovelha é a necessidade de uma proximidade ainda maior entre ela e o pastor. O vale é, em geral, sombrio e o anoitecer ali pode trazer trevas densas. Nesta circunstância não se pode ver ao longe. Nessa situação, o pastor não pode ser para a ovelha alguém de quem se fala, mas alguém com quem se fala.
É impressionante observar que, na narrativa do salmo 23, o escritor vem-se referindo ao seu pastor, usando a 3ª pessoa – "ele me faz repousar... ele me leva... ele me guia...". Mas quando começa a falar da passagem pelo vale, passa a usar a 2ª pessoa: "tu estás comigo". Já não fala a seu respeito, já não fala sobre ele, mas agora fala com ele; e sabe que não precisará temer coisa alguma porque a presença dele é garantida: "tu estás comigo". O pastor está presente e, ainda que as sombras sejam escuras, sua ovelha pode vê-lo e pode ouvi-lo porque bem perto dela é que ele vai.
Ali no vale, o pastor já não é para a ovelha aquele que vai à frente ou que a protege na retaguarda: é, antes, aquele que vai ao seu lado, promovendo a intimidade necessária àquela que, com ele, desce ao vale.
O vale é sombrio e, muitas vezes, trata-se da sombra da própria morte. E é aí que está a grande diferença entre esse frágil animal na sua relação com seu pastor e o homem ou a mulher que têm no SENHOR o seu pastor. O pastor desse animalzinho acompanha-o até ali – até o vale da sombra da morte; mas o SENHOR é o pastor que não somente nos acompanhará até o vale, mas também nos fará cruzá-lo, conduzindo-nos a habitar na Sua Casa, para todo o sempre.