quarta-feira, março 19, 2008

Um final melhor que o começo

Eu te conhecia só de ouvir, mas agora os meus olhos te vêem. (Jó 42.5)

Sempre fiquei impressionada com o modo como Deus restaurou a sorte de Jó. Se alguém tivesse me perguntado como e quando foi, eu teria dito que a restauração lhe veio enquanto intercedia por seus amigos. Um quadro impressionante: o pobre e enfermo Jó orando e apresentando a Deus sacrifícios em favor de seus amigos.
De fato, foi realmente aí que Deus lhe deu em dobro tudo quanto antes lhe constava como posses. Mas teria sido um descuido de minha parte afirmar que a restauração da sorte de Jó consistiu na restituição – termo especialmente ruim para essa circunstância – a restituição de seus materiais, de seus relacionamentos sociais e, ainda, de sua família.

A questão é que todas essas coisas tinham sido acréscimos, apenas acréscimos, como entendia o próprio Jó que, por ocasião do recebimento das notícias trágicas, afirmou que ele nada trouxera na sua vinda ao mundo e nada levaria quando dele partisse. Todas as coisas dele retiradas nessa ocasião haviam consistido sempre em abençoados acréscimos feitos por Deus – verdadeiro dono de todas as coisas – à sua vida aqui.

É um engano entender que a restauração na vida de Jó se tenha dado enquanto ele orava por seus amigos, e que tal restauração consistiu no acréscimo dobrado daquelas bênçãos à sua vida. Bênçãos que se podiam listar e contar usando números duas vezes maiores – com exceção, é claro, do número dos filhos, pois filhos que se foram permanecem na lista dessa herança recebida do Senhor, de modo que Jó tem, ao final da história, o dobro dos filhos que tinha no começo.

O próprio Jó entendia que, desse mundo, só se leva aquilo que tiver sido impresso por Deus mesmo na essência de nosso ser. Não irá conosco nenhum dos acréscimos: nem as riquezas, nem o respeito social, nem os tesouros do relacionamento conjugal, nem a preciosidade do convívio com as pessoas, pois são bênçãos acrescentadas.

Tanto no começo como fim de tudo, o que conta mesmo é o que há entre a pessoa e Deus. O quanto se tem dele. O quanto ele tem de nós. É por isso que o trabalho de Deus na vida de Jó era fazer com que este o conhecesse muito mais do que apenas de ouvir.

As duras experiências de Jó não foram mero capricho de um Deus desejoso de expor a fidelidade de seu servo. Foram, ao contrário, parte do plano de Deus para enriquecer Jó com tesouros que não podem ser roubados pelo ladrão, nem consumidos pelo tempo, nem corroídos pelas traças e nem estão sujeitos às intempéries da natureza. Tesouros que jamais se desgastam.

O que mais poderia Deus acrescentar à vida do homem mais rico e mais respeitado entre seus contemporâneos, senão o conhecimento íntimo e pessoal do Deus todo-poderoso, infinito e eterno? O que mais, senão o desvendar da visão para enxergar com os próprios olhos aquele que antes só conhecia de ouvir falar?

O plano de Deus era conceder a Jó o inestimável tesouro de saber-se conhecido pelo grande Deus, de relacionar-se com ele, compreendendo ser objeto do prazer de Deus a ponto de, nas solenes apresentações de potestades em sua augusta presença, ser o nome desse servo mencionado.

Esse plano incluiu duras provas: Jó experimentou o ultraje das cruéis invasões em suas propriedades; a tomada de seus bens; a dilacerante dor resultante da trágica morte dos filhos – todos em um único dia –; as enfermidades que tanto comiam sua carne quanto determinavam seu isolamento, tornando-o desprezível, inclusive para os próprios parentes; o conselho da esposa para blasfemar contra Deus e assim obter o alívio de uma existência insuportável.

Muitas perguntas lhe vieram à cabeça – e à cabeça de seus pares, também. Qual é a causa de tudo isso? Qual é o pecado tão horrível que torna alguém merecedor de tal penalidade? São as mesmas perguntas que nos vêem à mente quando passamos por provas, ainda que bem menores que as provas pelas quais passou Jó. Sim, é preferível descobrir a causa, saber de quem é a culpa, reparar a ofensa, conseguir o favor do Deus ofendido e irado. Sim, não é possível estancar o sangramento e engolir o grito para não tentar argüir aquele a quem acreditamos ter sido fiéis e que parece não haver notado tal fidelidade.

Assim encontra-se Jó: Ferido no corpo. Ferido no coração pelo desprezo dos que antes o valorizaram, respeitavam e dele buscavam conselhos. Ferido pelo luto que escureceu o lar. Ferido em sua alma pela incerteza quanto aos pensamentos cósmicos de Deus, os seus princípios. Ferido pela insegurança em sua identidade espiritual, insegurança ainda mais reforçada pelos amigos que se achegam para escavar-lhe a vida a fim de descobrir as falhas responsáveis pelas dores tantas que lhe sobrevieram.

Ferido. Carente de restauração. Posso pensar num grande trabalho de restauração na vida deste homem em, pelo menos, dois momentos.

O primeiro momento foi quando Deus estabeleceu com ele uma longa conversa (embora fosse impossível não emudecer diante da poderosa voz do Altíssimo, como o fez Jó a certa altura). Uma conversa longa o suficiente para que as dúvidas, as inseguranças e a ignorância de Jó se transformassem em perguntas, e as respostas viessem e outras perguntas fossem feitas de volta, para as quais, todavia, Jó – prisioneiro do tempo e do espaço, limitado em seu estado de criatura – nada tinha a dizer, mas apenas a calar.

O segundo momento foi quando Deus declarou plena aceitação em relação a Jó, ordenando, inclusive, que seus acusadores, buscassem, eles sim, o perdão de Deus por meio da intercessão de Jó, cuja oração era como perfume na presença dele.

Nenhuma restauração de status social ou econômico, de saúde física ou mesmo da ordem natural da vida em família pode sobrepor-se, em valor, à grandeza da ampliação da visão em relação a Deus e da declaração de que se é aceito por ele. A riqueza de Jó consistia nesse tesouro. E, na verdade, esse é o tesouro sem o qual não há sentido em nenhum outro: nem nos relacionamentos sociais, nem nos projetos de família e, menos ainda, nos bens materiais.

A experiência promovida por Deus na vida de Jó desperta nosso olhar para perceber, em nosso tempo, um grande equívoco: invertemos a ordem dos valores, buscando em segundo - ou em último lugar - o reino de Deus, porque, primeiro, queremos que as outras coisas nos sejam acrescentadas.