quarta-feira, outubro 26, 2005

Renovação paulatina

Pouco a pouco, os lançarei de diante de ti, até que te
multipliques e possuas a terra por herança. Não
os lançarei de diante de ti num só ano, para que
a terra se não torne em desolação e as feras
do campo se não multipliquem contra ti.
Êxodo 23.30-31

O texto em epígrafe é parte das orientações dadas a um povo que estava sendo tirado de uma terra onde tinham sido escravos por mais de 400 anos. Através dessas palavras, seu Deus lhes faz uma promessa de desocupar a terra que já lhes pertencia desde antes de seus anos de escravidão e que fora ocupada por outros povos. Todavia, esclarece que não vai desocupá-la toda de uma vez, mas há de fazê-lo paulatinamente, na medida que eles se fossem multiplicando. Caso contrário, a terra poderia ser invadida por feras.

Essa narrativa me faz lembrar de uma coisa que ouvi, certa vez, de um amigo psicólogo. Ele dizia que, quando lidava com situações em que as pessoas estavam inseridas em crises muito intensas e iniciadas já há muito tempo, as terapias nunca visavam a extinguir abruptamente tais crises. A razão é que, quando as pessoas lidam há muito tempo com situações que absorvem seu tempo, sua atenção e sua energia, elas vão-se tornando dependentes de tais crises. Extingui-las, abruptamente, seria o mesmo que retirar-lhes a base de sua sustentação, o motivo pelo qual, em última análise, elas vivem. Desse modo, o terapeuta deveria trabalhar no sentido de conduzir essas pessoas a encontrarem novas fontes de motivação para a vida. E, somente, quando coisas novas fossem ocupando o espaço em suas mentes e corações, é que poderiam ir desocupando-se das antigas ocupações. É incrível pensar nisso. Existem pessoas que são sustentadas pelas mesmas coisas que as atormentam. Lembro-me de um trecho de um poema barroco, intitulado "A uma ausência" do escritor português, Antônio Barbosa Barcelar, que diz justamente isso:

"Sinto-me sem sentir todo abrasado
No rigoroso fogo, que me alenta,
O mal, que me consome, me sustenta,
O bem, que me entretém, me dá cuidado"

De fato, Deus conhece a estrutura do ser humano. É isso que somos. Nosso ser não é mais que uma ausência. Ocupamo-nos desesperadamente das coisas que tocarem as nossas vidas. Às vezes, algumas delas tocam nossos corações, consumindo-nos e dilacerando-nos. E, no entanto, não buscamos extingui-las, porque sabemos que o vazio, a ausência, é pior que qualquer outro mal. Não sabemos viver uma vida sem propósito. Mas há propósitos que queimam como fogo, enquanto insistimos em pensar que eles apenas nos alentam.
Eu entendo que é por isso que, quando encontramos em Deus o grande e único propósito que nos sacia com o bem verdadeiro, ele nos conduz, daí em diante, num tratamento que varia de uma para outra pessoa, da perspectiva temporal. Conquanto a obra de Deus no ser humano seja plena desde o primeiro encontro com ele, há uma caminhada a ser feita, durante a qual o Espírito dele vai enchendo a vida da pessoa de fruto e livrando-a dos ranços oportunistas e parasitários de uma vida velha. Se pensarmos bem, às vezes não temos, para com as pessoas, nem com nós mesmos, a mesma paciência que vemos em Deus.

Quando o povo, que fora libertado de sua escravidão, foi levado à terra que outrora era deles e agora voltaria a ser, eles tiveram que aprender a sabedoria de esperar a desocupação paulatina da terra, a qual iria acontecer na mesma medida em que fossem se multiplicando. Tomar posse da terra envolveria um processo de dupla face. Por um lado, era preciso que a terra fosse desocupada; por outro, era preciso crescer. E tudo isso num dinamismo tal que fosse capaz de impedir a acomodação na situação de crise.

Esse processo me ensina muitas coisas: É preciso saber quem sou, saber que sou distinto daquilo que, porventura, invadir a minha terra, o meu espaço, a minha vida, seja lá o que for. É preciso, ainda buscar ocupar a herança que me foi dada, o que farei na mesma proporção em que aprender a despir-me do que cheira à antigüidade, na mesma proporção em que aprender a despedir-me dos fantasmas que se negam como tais, na mesma proporção em que valores novos passam a encantar o meu olhar.
É, assim, através deste processo, que vou deslocando o meu investimento de tempo, atenção e energia para as coisas que são totalmente novas.

segunda-feira, outubro 24, 2005

Sendo servido ao servir


Então, lhe veio a palavra do SENHOR, dizendo: Dispõe-te, e vai a Sarepta,
onde ordenei a uma mulher viúva que te dê comida.
Então, ele se levantou e se foi a Sarepta;
chamou a viúva e lhe disse: Traze-me, peço-te, uma vasilha de água para eu beber.
Traze-me também um bocado de pão na tua mão.
Porém ela respondeu: Tão certo como vive o SENHOR, teu Deus, nada tenho cozido;
há somente um punhado de farinha numa panela e um pouco de azeite numa botija;
vou preparar esse resto de comida para mim e para o meu filho;
comê-lo-emos e morreremos.
Elias lhe disse: Não temas;
assim diz o SENHOR, Deus de Israel: A farinha da tua panela não se acabará,
e o azeite da tua botija não faltará, até ao dia em que o SENHOR fizer chover sobre a terra.
Foi ela e fez segundo a palavra de Elias; assim, comeram ele, ela e a sua casa muitos dias.
Da panela a farinha não se acabou, e da botija o azeite não faltou,
segundo a palavra do SENHOR, por intermédio de Elias. I Reis 17.8-16

A situação inicial
A fonte que supriu Elias durante os dias iniciais da seca que sobreveio à sua terra secara. Durante aqueles dias, o próprio Deus encarregou-se de suprir o seu profeta de alimento, enviando-a por meio de corvos. A


A nova ordem

Então, a palavra do Senhor veio novamente ao profeta, dando-lhe uma ordem, humanamente questionável, pois não havia água, não havia comida: "sai de onde estás, da tua terra (da região de Querite, a leste do Jordão, pouco distante do Mar Morto) e vai à Sarepta, que pertence a Sidom." O profeta não questiona. Apenas obedece. Parte para uma longa viagem. Não havendo água, nem comida, não se sabe como ele será sustentado durante a viagem, pois não é mencionado no texto. Nada sabemos e, provavelmente, nem mesmo o profeta o sabia. Era uma questão de confiança.

Em meio a escassez

Ao chegar à cidade, muito provavelmente, foi reconhecido como profeta, por causa de seus trajes característicos. E, tão logo viu a viúva, pediu água. Acrescentou outro pedido: pão. A resposta da viúva foi surpreendente: "não tenho nada pronto. Mas tenho um punhado de farinha e um pouco de azeite. Estava ainda agora indo preparar a última refeição para mim e para meu filho. É tudo que tenho. Comeremos e depois moremos." Na seqüência do diálogo, o profeta, lhe diz que preparasse sim, mas para ele primeiro. Só depois haveria de preparar para ela e para seu filho. Depois de teres dado prioridade de servir a Deus, que resolveu suprir a necessidade de seu profeta através de ti - esclarece o profeta (porque não se tratava de um ato de egoísmo de sua parte) - "verás que o azeite não acabará na botija, nem a farinha na panela."

Escolhendo entre o que se vê e o que se não vê

Era uma ordem difícil de obedecer, seguida de uma promessa difícil de alguém querer correr o risco de perder. O raciocínio lógico conduziria ao pensamento de que ela poderia fazer uma última refeição, da qual tinha certeza e, com a mesma certeza, aguardar a morte para si e para seu filho. Ou, ela poderia abrir mão de comer com seu filho aquela última refeição que seus olhos provavam estar lá, numa atitude de fé na promessa de que não morreriam de fome, pois o suprimento viria da parte de Deus para muitos dias.
Ela preferiu abrir mão de que via em benefício da esperança de alcançar o que ainda não se via. Foi, fez como o profeta orientou. E, de fato, a promessa se cumpriu: a farinha não se esgotou da panela, nem o azeite da botija.

Aprendendo a lição do texto

Embora esse texto seja carregado de simbolismos, não os quero explorar aqui. Quero guardar, desta vez, a mensagem que salta do texto: Deus, comprometido com seu servo profeta, comprometido em sustentá-lo em dias de seca e de fome na terra, abençoa com fartura uma viúva pobre, cuja esperança era comer a última refeição com seu filho e sentar à espera da chegada da morte, sem nenhuma alternativa. Muitas lições essa narrativa traz ao meu coração.

1) Escolher com sabedoria e motivado pela fé: Aquela viúva poderia ter preferido optar pela comida certa, na frente dos seus olhos para não antecipar a inevitável morte – afinal ela pertencia a outro povo que não servia ao mesmo Deus do profeta –, e não faltariam outras pessoas a quem Deus pudesse abençoar para sustentar o seu profeta. Fico pensando que esse é um princípio característico do modo de Deus agir. Muitas vezes a oportunidade de ajudar e de servir bate à minha porta. Preciso estar atenta para não deixar passar tal oportunidade de ver Deus suprindo abundantemente minhas necessidades com o objetivo de suprir a necessidade de seus enviados. Não posso deixar de perceber que, primeiro Deus ordena a doar, espera minha resposta de confiança na palavra dele, para então, e tão somente então, fazer transbordar a minha dispensa.

2) Repartindo o pouco e vendo-o tornar-se no suficiente: Por outro lado, não posso deixar de observar que Deus não escolheu uma pessoa abastada para suprir a necessidade de seu profeta, tornando-a, ainda mais abastada (certamente, para que a tal pessoa abastada jamais gabasse de si mesma, dizendo que foi abençoado por dar daquilo que já era seu - como se o que ela tinha já não fosse uma dádiva de Deus). A viúva doou de sua pobreza, do pouco que tinha.

3) Reconhecendo a soberania de Deus na escolha de seus instrumentos: Ao olhar o texto por esse ângulo, o que percebo é que o profeta não questionou a Deus, com soberba, achando que fosse um absurdo Deus mandá-lo a uma terra estrangeira para ser sustentado por uma viúva à beira do desespero. O fato é que ninguém é miserável demais, ninguém é tão pobre que não possa ser usado por Deus para abençoar. Além disso, quem determina o instrumento de bênção é o abençoador, não o abençoado. Infelizmente, ou felizmente (quem sabe?) geralmente as pessoas de menos posses são as que têm coração mais aberto para abençoar a outros, mesmo em face de grande pobreza.

4) É preciso aprender a honrar os enviados de Deus: Esse episódio é citado por Jesus muitos séculos mais tarde, para dizer que um profeta não tem honra em sua própria terra. É assim que ele diz: "quantas viúvas havia em Israel naqueles dias? Mas a nenhuma delas foi enviado o Elias, senão à viúva de uma terra estrangeira, à viúva de Sarepta, em Sidom". Espero que Deus me ajude a não desonrar aqueles que são levantados por ele para falar em minha terra, no meu contexto, à minha vida.