sexta-feira, março 03, 2006

Renovação que se prolonga


Pouco a pouco, os lançarei de diante de ti,
até que te multipliques e possuas a terra por herança.
Não os lançarei de diante de ti num só ano,
para que a terra se não torne em desolação
e as feras do campo se não multipliquem contra ti.
Êxodo 23.30-31
O texto em epígrafe é parte das orientações dadas a um povo que estava sendo tirado de uma terra onde tinham sido escravos por mais de 400 anos. Nele, seu Deus lhes faz uma promessa de desocupar a terra que já lhes pertencia desde antes de seus anos de escravidão e que fora ocupada por outros povos. Todavia, esclarece que não vai desocupá-la toda de uma vez, mas há de fazê-lo paulatinamente, à medida que eles se fossem multiplicando. Caso contrário, a terra poderia ser invadida por feras.

Essa narrativa me faz lembrar de uma coisa que ouvi, certa vez, de um psicólogo. Ele dizia que, quando lidava com situações em que as pessoas estavam inseridas em crises muito intensas e iniciadas já há muito tempo, as terapias nunca visavam a extinguir abruptamente tais crises. A razão é que, quando as pessoas lidam há muito tempo com situações que absorvem seu tempo, sua atenção e sua energia, elas vão se tornando dependentes de tais crises. Extingui-las, abruptamente, seria o mesmo que retirar-lhes a base de sua sustentação, do motivo pelo qual, em última análise, elas vivem. Desse modo, o terapeuta deveria trabalhar no sentido de conduzir essas pessoas a encontrarem novas fontes de motivação para a vida. E, somente, à medida em que coisas novas fossem ocupando o espaço em suas mentes e corações, é que poderiam ir desocupando-se das antigas ocupações.

É incrível pensar nisso. Existem pessoas que são sustentadas pelas mesmas coisas que as atormentam. Lembro-me de um trecho de um poema barroco, intitulado "A uma ausência" do escritor português, Antônio Barbosa Bacelar, que dizia justamente isso:

"Sinto-me sem sentir todo abrasado
No rigoroso fogo, que me alenta,
O mal, que me consome, me sustenta,
O bem, que me entretém, me dá cuidado"

De fato, Deus conhece a estrutura do ser humano. É isso que somos. Nosso ser não é mais que uma ausência. Ocupamo-nos desesperadamente das coisas que tocarem as nossas vidas. Às vezes, algumas delas tocam nossos corações, consumindo-nos e dilacerando-nos. E, no entanto, não buscamos extingui-las, porque sabemos que o vazio, a ausência, é pior que qualquer outro mal. Não sabemos viver uma vida sem propósito. Mas há propósitos que queimam como fogo, enquanto insistimos em pensar que eles apenas nos alentam.

Eu entendo que é por isso que, quando encontramos em Deus o grande e único propósito que nos sacia com o bem verdadeiro, ele nos conduz daí em diante, num tratamento que varia de uma para outra pessoa, numa perspectiva temporal. Conquanto a obra dele seja plena em nós desde o primeiro encontro – se morrêssemos ali, estaríamos prontos – , há uma caminhada a ser feita, durante a qual o Espírito dele vai enchendo a vida da gente de fruto e nos livrando dos ranços oportunistas e parasitários de uma vida velha. Se pensarmos bem, às vezes não temos, para com as pessoas, nem com nós mesmos, a mesma paciência que vemos em Deus.

Quando o povo que fora libertado de sua escravidão, foi levado à terra que outrora era deles e agora voltaria a ser, eles tiveram que aprender a sabedoria de esperar a desocupação paulatina da terra, a qual iria acontecer na mesma medida em que fossem se multiplicando. Tomar posse da terra envolveria um processo de dupla face. Por um lado, era preciso que a terra fosse desocupada; por outro, era preciso crescer. E tudo isso num dinamismo tal que fosse capaz de impedir a acomodação na situação de crise.

Esse processo me ensina muitas coisas: É preciso saber quem sou, saber que sou distinto daquilo que invadiu a minha terra, o meu espaço, a minha vida, seja lá o que for. É preciso, ainda buscar ocupar a herança que me foi dada, o que farei na mesma proporção em que aprender a despir-me do que cheira à antigüidade, na mesma proporção em que aprender a despedir-me dos fantasmas que se negam como tais, na mesma proporção em que valores novos passam a encantar o meu olhar. É, assim, através deste processo, que vou deslocando o meu investimento de tempo, atenção e energia para as coisas que são totalmente novas.