terça-feira, fevereiro 24, 2009

Não se trata de descobrir de quem é a culpa

"... Mas foi para que se manifestem nele as obras de Deus." João 9.3b

Desde o início dos tempos, existe a preocupação em descobrir de quem é a culpa, em achar um responsável.

Já os nossos primeiros pais, quando inquiridos quanto aos motivos que os levaram a esconderem-se de Deus, na virada do dia, quando este vinha para a comunhão de costume, tentaram achar um culpado. Primeiro foi Adão. “Ah, Senhor, se não tivésseis me dado esta mulher... foi ela... a mulher que tu me deste...”. Aos olhos de Adão, em última análise, Deus era o responsável. A mulher, por sua vez, dizia “foi a serpente”...

Tempos depois, um homem chamado Jó, por ocasião de uma grande provação, estando a passar por uma tremenda tribulação, tenta descobrir os motivos para estar sofrendo tão grande dor e, não concordando em estivessem nele mesmo a responsabilidade por experimentar as tamanhas tragédias que se abateram sobre sua vida, levanta suas questões diante de Deus.

Seus amigos se indignam com tal questionamento. Para eles, era certo que o motivo estava em Jó. Necessário, portanto, era descobrir o pecado a ser tratado, pois certamente era ele e tão somente ele o responsável por tudo que lhe sobreviera.

Já em dias menos distantes de nós, os discípulos de Jesus, passando por um homem nascido cego, buscam uma teologia que esclareça um fato como aquele. Fosse ele como o cego da cidade de Jericó, que buscava tornar a ver, poder-se-ia imaginar que era dele mesmo a culpa pela perda da visão. Mas um cego já nascido assim... de quem seria a culpa? Como poderia ser dele? Seria a culpa, quem sabe, dos pais?

Como é difícil lidar com um problema se não pudermos achar um culpado. Nossa lógica lida com causas e conseqüências – seja por um raciocínio linear ou pelo princípio do caos. Mas há que se encontrar uma borboleta que bata suas pequenas asas – que seja! –há que se encontrar um culpado, um responsável, um ponto de partida.

Um bode expiatório é imprescindível... Adão já dizia: é a mulher... Aquela que tu me deste...

Os amigos de Jó o interpelam, querendo fazer uma análise de sua vida – haveremos de achar o ponto de partida de tudo... Vamos ajudá-lo a sair dessa, afinal, amigo é pra essas coisas...

Os discípulos de Jesus também querem compreender: é provável que seja dos pais a culpa da cegueira, afinal ele já nasceu assim...

Mas é Jesus quem responde a grande questão – ‘de quem é a culpa?’: Não é pelo pecado dele, não é pelo pecado dos pais... É para a glória de Deus.

Há pecado no cego, há pecado nos pais. Mas não se trata de descobrir de quem é a culpa...

Humanamente, todavia, essa resposta não serve. O cego poderia até dizer: Ser cego porque mereci, porque eu pequei... é uma coisa! Ser cego porque meus pais pecaram e causaram tudo isso... ainda vá lá. É até mais fácil quando há um outro em quem se possa pôr a culpa. Mas Jesus está dizendo que não se trata de descobrir de quem é a culpa.

De fato, essa coisa é até muito humana. Não é de hoje que aprendemos a culpar os pais, fazer deles um depósito de rancor; não é de hoje que aprendemos a voltar os olhos para o passado, na tentativa de identificar traumas originados na infância, e achar culpados para as próprias imperfeições.

Quem se atreveria agora a dizer ao sofredor, àquele que foi atingido por uma tragédia, ao que foi acometido pela calamidade, a um que, talvez, tenha aprendido a autopiedade como um recurso para suavizar a própria dor, olhando para si mesmo como um coitado que, antes mesmo de ter nascido, antes mesmo de ter podido fazer uma coisa ruim, já tinha sido penalizado por uma culpa que era de seus pais – quem se atraveria?!

Quem se atreveria, a esta altura, a afirmar que não se trata de descobrir de quem é a culpa, que se trata, ao contrário, de encontrar os propósitos por trás de tudo isso?!

É verdade que há quem diga não existir um significado por trás das coisas, um sentido para o que quer que aconteça. Há quem diga que tudo nada mais é do que um mero jogo de causas e conseqüências, e que sempre há um causador, um culpado, que sempre há um responsável...

É fato: sejam os culpados identificados e penalizados e está feita a justiça. Foi assim no caso do cego de nascença, no caso de Jó, no caso de Eva, no caso de Adão. Os culpados foram identificados, a falta foi penalizada – mas sobre o seu representante: o Deus feito homem – Jesus.

Mas, não se trata apenas de descobrir de quem é a culpa. Deus mostrou os culpados e se pôs em seu lugar para a penalização. Justiça plena. Justiça cheia de graça. Entretanto, Deus é ainda maior do que tudo isso. Fez não somente a justiça, mas encheu a vida de propósito. Deu um sentido especial para tudo o que nos acontece.

Não se pode negar que, não apenas a cegueira, mas também todo tipo de doença, com certeza, não existiria no mundo se nele não tivesse entrado o pecado, cuja conseqüência é a morte.

Para além, disso, todavia, enriqueceu Deus a existência humana, fazendo com que, mesmo os males – que advêm da queda – pudessem trazer, por trás de si, um sentido, um propósito. A graça de Deus é mais abundante do que o pecado. É suficiente para cobrir as nossas culpas e ainda transformar nossos males em instrumentos de manifestação de sua glória.

Os discípulos perguntaram por que aquele homem nasceu cego. Mas Jesus respondeu para que ele havia nascido assim: foi para a glória de Deus. Por isso, não se trata mais de ficar apenas tentando achar culpados. Trata-se de enxergar sentido na vida, em cada situação, mesmo na mais difícil. Trata-se de encontrar um significado, vislumbrar o propósito de Deus e, como o cego, entender que, por trás da dor, muito mais do que um culpado, há um propósito que manifestará a glória de Deus.

sexta-feira, fevereiro 20, 2009

Muito mais que odre de água

"Abrindo-lhe Deus os olhos, viu ela um poço de água..."
(Gênesis 21.14-21)


Hagar “ganha” liberdade. E é assim que acontece. A mulher dera à luz um filho para sua senhora - que antes era estéril, mas que, depois, veio a gerar um filho de seu próprio ventre. Tempos depois, no entanto, o filho nascido da escrava caçoava do que fora gerado pela senhora. E isso que resultou na liberdade de Hagar: A dona da casa disse a marido “despede-a”. E ele, mesmo com pesar, a despediu.
Levantando-se de madrugada, proveu-lhes de pão e de um odre de água. Assim ele despediu mãe e filho. Saiu ela andando errante com o menino pelo deserto até a água do odre acabar. Finda a provisão de água, colocou o menino debaixo de um dos arbustos, afastou-se e sentou-se defronte – à distância – para que não visse o filho morrer. Perdidas as esperanças, esgotadas as forças, esquecidas as antigas promessas – ouvidas um dia junto a uma fonte de água, ela se senta no chão e chora. Agora, sem mais perspectivas que não fossem apenas a da chegada da morte, esquiva-se pelo menos de intensificar o próprio sofrimento de ver o filho agonizar até morrer.
O menino, no entanto, clama a Deus e este ouve a sua voz. Das alturas o anjo de Deus fala com Hagar, renova promessas antigas, abre-lhe os olhos para ver um poço de água. Hagar se ergue, então, enche o odre com água do poço e dessedenta o menino.
Não é sua primeira experiência com Deus junto a uma fonte de água no deserto. Na vez anterior, o anjo lhe perguntara “de onde vinha e para onde ia”. Ela se reconhecera fugitiva e foi orientada a retornar à casa, humilhar-se diante de sua senhora. Aquela intensa experiência levou-a a dizer “olhei eu para aquele que me vê”. Aprendera sobre si mesma, olhando no espelho do olhar daquele que a via. Tivera um encontro com o Deus-que-vê.
Nessa sua segunda experiência junto ao poço, descobre que o Deus-que-vê é também o Deus-que-ouve. Ele ouviu a voz do menino que clamava. Ela precisa terminar de aprender a lição com o Deus-que-vê – a lição que ensina a olhar e a ver. E ela precisa também aprender uma nova lição com o Deus-que-ouve – a lição que ensina a ouvir. Olhos e ouvidos viciados têm de aprender as novas lições.
Com o Deus-que-vê, Hagar aprendera a ver a si mesma, porque aprendeu a ver aquele que vê. Ela se viu no espelho dos olhos daquele que vê. Com o Deus-que-ouve, Hagar aprendeu a ouvir. E o que foi que ele lhe disse? “Não temas, porque eu ouvi a voz do menino, daí, de onde ele está".
Hagar aprendeu a ouvir o Deus-que-ouve. E aprendeu que as palavras do Deus-que-ouve - o Deus-que-vê, o Deus-que-fala – muito mais do que meras palavras ditas ao vento, são palavras que trazem à existência coisas que não existem – traz à existência fontes no deserto.
Mas, ao ir à fonte, Hagar obteve muito mais do que um odre cheio de água. Aquele era um momento em que ela podia perceber que depender da provisão humana é depender do que certamente – e muito depressa – acabará. Porque a provisão humana é provisória, passageira e finita. Melhor é depender do criador das fontes, aquele que tem poder para fazê-las brotar no deserto, no lugar exato em que desfalece o sedento. Há uma fonte – da parte de Deus – mesmo no deserto, e nela o odre pode ser reabastecido toda vez que dele a água se esgotar.
Muito mais do que um odre reabastecido, renovado em conteúdo, Hagar encontrara renovação de perspectivas. Aquele que lhe falou das alturas foi também quem lhe abriu os olhos para ver. Sentada ali no chão a chorar, Hagar nada podia ver porque, durante anos, seus olhos estiveram mirando perspectivas humanas de futuro. Viciaram-se na visão limitada do humanamente provável. Aquele odre cheio da água tirada de uma fonte no deserto é resultado de uma renovação de visão e do entendimento de que o seu futuro e o de seu filho consistiam numa história a ser escrita pelo próprio Deus. Aquele odre cheio de água resultou em compreender que a esperança de fazer a própria história à sombra da história de outro resulta em ficar sem nenhuma perspectiva no momento em que se é excluído do foco da história do outro.
Hagar, agora, com os olhos que foram abertos para enxergar o poço, podia ter suas perspectivas renovadas e vislumbrar o desenrolar de uma história ainda não contada, ainda não vivida, uma história baseada nos projetos de Deus para ela mesma e para o seu filho.
O odre-antes-vazio-mas-agora-cheio representava, para Hagar, o fim de uma jornada sem rumo, o ponto final de um andar errante pelo deserto. Ela, que antes sabia de onde vinha, mas não sabia para onde ia, tinha renovadas as promessas e o direcionamento de Deus. Sua vida não mais se resumia em sentar no chão para chorar à espera da morte, embora a morte fosse a expectativa lógica e certa para aquele cujas provisões humanas de água e de pão cessaram. Esperar a morte é esperar o humanamente óbvio. Ao renovar-lhe as promessas, entretanto, renovam-se-lhe, também, as forças, a disposição para levantar, para caminhar até a fonte, para erguer o filho, segurá-lo pela mão, para fazer dele um flecheiro, para conduzi-lo até o ponto de constituir sua própria família, para apoiá-lo até ver cumprida a promessa de ser ele um príncipe e tornar-se um grande povo.
Há muitas fontes que o Criador fez brotar nos desertos da vida, que não podem ser notadas pelos olhos de quem só vislumbra o aproximar-se da morte. Mas a provisão que não se vê não pode ser desfrutada. É preciso ter os olhos desvendados, ter olhos que aprenderam a enxergar.
Como aconteceu com Hagar, há muitos arbustos sob os quais são depositadas as últimas esperanças; muitos caminhos em cujas margens alguém pode assentar-se, chorar e esperar pela chegada do fim. Há muitas promessas caídas no esquecimento durante o tempo de espera. Mas há, acima de tudo isso, um Deus-que-vê o aflito, um Deus-que-ouve o clamor do que desfalece. E ele é capaz de desbloquear o olhar do abatido e levantar-lhe o vigor para caminhar até a fonte das águas frescas.
De fato, aquele foi muito mais do que um odre cheio de água.


quarta-feira, março 19, 2008

Um final melhor que o começo

Eu te conhecia só de ouvir, mas agora os meus olhos te vêem. (Jó 42.5)

Sempre fiquei impressionada com o modo como Deus restaurou a sorte de Jó. Se alguém tivesse me perguntado como e quando foi, eu teria dito que a restauração lhe veio enquanto intercedia por seus amigos. Um quadro impressionante: o pobre e enfermo Jó orando e apresentando a Deus sacrifícios em favor de seus amigos.
De fato, foi realmente aí que Deus lhe deu em dobro tudo quanto antes lhe constava como posses. Mas teria sido um descuido de minha parte afirmar que a restauração da sorte de Jó consistiu na restituição – termo especialmente ruim para essa circunstância – a restituição de seus materiais, de seus relacionamentos sociais e, ainda, de sua família.

A questão é que todas essas coisas tinham sido acréscimos, apenas acréscimos, como entendia o próprio Jó que, por ocasião do recebimento das notícias trágicas, afirmou que ele nada trouxera na sua vinda ao mundo e nada levaria quando dele partisse. Todas as coisas dele retiradas nessa ocasião haviam consistido sempre em abençoados acréscimos feitos por Deus – verdadeiro dono de todas as coisas – à sua vida aqui.

É um engano entender que a restauração na vida de Jó se tenha dado enquanto ele orava por seus amigos, e que tal restauração consistiu no acréscimo dobrado daquelas bênçãos à sua vida. Bênçãos que se podiam listar e contar usando números duas vezes maiores – com exceção, é claro, do número dos filhos, pois filhos que se foram permanecem na lista dessa herança recebida do Senhor, de modo que Jó tem, ao final da história, o dobro dos filhos que tinha no começo.

O próprio Jó entendia que, desse mundo, só se leva aquilo que tiver sido impresso por Deus mesmo na essência de nosso ser. Não irá conosco nenhum dos acréscimos: nem as riquezas, nem o respeito social, nem os tesouros do relacionamento conjugal, nem a preciosidade do convívio com as pessoas, pois são bênçãos acrescentadas.

Tanto no começo como fim de tudo, o que conta mesmo é o que há entre a pessoa e Deus. O quanto se tem dele. O quanto ele tem de nós. É por isso que o trabalho de Deus na vida de Jó era fazer com que este o conhecesse muito mais do que apenas de ouvir.

As duras experiências de Jó não foram mero capricho de um Deus desejoso de expor a fidelidade de seu servo. Foram, ao contrário, parte do plano de Deus para enriquecer Jó com tesouros que não podem ser roubados pelo ladrão, nem consumidos pelo tempo, nem corroídos pelas traças e nem estão sujeitos às intempéries da natureza. Tesouros que jamais se desgastam.

O que mais poderia Deus acrescentar à vida do homem mais rico e mais respeitado entre seus contemporâneos, senão o conhecimento íntimo e pessoal do Deus todo-poderoso, infinito e eterno? O que mais, senão o desvendar da visão para enxergar com os próprios olhos aquele que antes só conhecia de ouvir falar?

O plano de Deus era conceder a Jó o inestimável tesouro de saber-se conhecido pelo grande Deus, de relacionar-se com ele, compreendendo ser objeto do prazer de Deus a ponto de, nas solenes apresentações de potestades em sua augusta presença, ser o nome desse servo mencionado.

Esse plano incluiu duras provas: Jó experimentou o ultraje das cruéis invasões em suas propriedades; a tomada de seus bens; a dilacerante dor resultante da trágica morte dos filhos – todos em um único dia –; as enfermidades que tanto comiam sua carne quanto determinavam seu isolamento, tornando-o desprezível, inclusive para os próprios parentes; o conselho da esposa para blasfemar contra Deus e assim obter o alívio de uma existência insuportável.

Muitas perguntas lhe vieram à cabeça – e à cabeça de seus pares, também. Qual é a causa de tudo isso? Qual é o pecado tão horrível que torna alguém merecedor de tal penalidade? São as mesmas perguntas que nos vêem à mente quando passamos por provas, ainda que bem menores que as provas pelas quais passou Jó. Sim, é preferível descobrir a causa, saber de quem é a culpa, reparar a ofensa, conseguir o favor do Deus ofendido e irado. Sim, não é possível estancar o sangramento e engolir o grito para não tentar argüir aquele a quem acreditamos ter sido fiéis e que parece não haver notado tal fidelidade.

Assim encontra-se Jó: Ferido no corpo. Ferido no coração pelo desprezo dos que antes o valorizaram, respeitavam e dele buscavam conselhos. Ferido pelo luto que escureceu o lar. Ferido em sua alma pela incerteza quanto aos pensamentos cósmicos de Deus, os seus princípios. Ferido pela insegurança em sua identidade espiritual, insegurança ainda mais reforçada pelos amigos que se achegam para escavar-lhe a vida a fim de descobrir as falhas responsáveis pelas dores tantas que lhe sobrevieram.

Ferido. Carente de restauração. Posso pensar num grande trabalho de restauração na vida deste homem em, pelo menos, dois momentos.

O primeiro momento foi quando Deus estabeleceu com ele uma longa conversa (embora fosse impossível não emudecer diante da poderosa voz do Altíssimo, como o fez Jó a certa altura). Uma conversa longa o suficiente para que as dúvidas, as inseguranças e a ignorância de Jó se transformassem em perguntas, e as respostas viessem e outras perguntas fossem feitas de volta, para as quais, todavia, Jó – prisioneiro do tempo e do espaço, limitado em seu estado de criatura – nada tinha a dizer, mas apenas a calar.

O segundo momento foi quando Deus declarou plena aceitação em relação a Jó, ordenando, inclusive, que seus acusadores, buscassem, eles sim, o perdão de Deus por meio da intercessão de Jó, cuja oração era como perfume na presença dele.

Nenhuma restauração de status social ou econômico, de saúde física ou mesmo da ordem natural da vida em família pode sobrepor-se, em valor, à grandeza da ampliação da visão em relação a Deus e da declaração de que se é aceito por ele. A riqueza de Jó consistia nesse tesouro. E, na verdade, esse é o tesouro sem o qual não há sentido em nenhum outro: nem nos relacionamentos sociais, nem nos projetos de família e, menos ainda, nos bens materiais.

A experiência promovida por Deus na vida de Jó desperta nosso olhar para perceber, em nosso tempo, um grande equívoco: invertemos a ordem dos valores, buscando em segundo - ou em último lugar - o reino de Deus, porque, primeiro, queremos que as outras coisas nos sejam acrescentadas.

terça-feira, outubro 24, 2006

Ainda que eu ande pelo vale...


"Ainda que eu ande pelo vale da sombra da morte,
não temerei mal nenhum porque tu estás comigo;
a tua vara e o teu cajado me consolam".
Salmo 23.4

Certo pastor escreveu em seu diário, por ocasião do falecimento de sua esposa: "não se pode pensar que passaremos a vida pulando de um para outro cume das montanhas, como se não houvesse vales entre elas".
O salmo 23 é a produção de uma alma que se descobriu qual ovelha que tinha por Pastor o próprio SENHOR. Nele, o escritor, que também é pastor desses frágeis animais, descreve a caminhada das ovelhas sob os cuidados de um bom pastor.
É característico desse animal ser dependente dos cuidados pastorais. O salmista fala de si como ovelha que encontrou no SENHOR o pastor que nada lhe deixa faltar. Num olhar amplo da vida percebe que de nada passou necessidade.
Entretanto, tal afirmação não implica, de modo algum, que a vida de uma ovelha conhece apenas pastos verdejantes e águas de descanso. Há também os vales. Passar por eles proporciona à ovelha uma experiência singular que ela não teria se não descesse ao vale.
Alguns aspectos da passagem pelo vale são notáveis e diferenciadores em relação aos outros lugares por onde o pastor conduz as suas ovelhas. Um deles é o fato de que as ovelhas passam pelo vale porque seu pastor as conduz para lá. É o vale uma trajetória tão certa na caminhada das ovelhas, quanto o são os cumes das montanhas, os pastos verdejantes e as águas tranqüilas. Mas, afinal, por que razão um pastor tiraria suas frágeis e dependentes ovelhas dos pastos que se encontram em lugares planos e altos – tão seguros, aquecidos e iluminados?
O fato é que nos vales é que se encontram as águas mais frescas e mais abundantes e a relva mais viçosa. Águas e alimento que se tornam ainda mais desejáveis após o esforço da caminhada – o exercício que tornará as ovelhas ainda mais fortes e mais preparadas para enfrentar situações difíceis. Todavia, para chegar a essas desejáveis águas frescas e abundantes, o já tão cuidadoso pastor, dobrará a vigilância. Ali são especialmente necessários o cajado e a vara. Se o cajado confere à ovelha a sensação de segurança por ser o instrumento que pastor utilizará para ajudá-la a sair de algum buraco ou do meio de um espinheiro em que, porventura, ela cair, a vara, por outro lado, é instrumento de disciplina e correção. Mas, tanto o cajado quanto a vara são vistas pela ovelha como figuras de fortalecimento e confiança: "tua vara e o teu cajado me consolam". Eles ensinam que, no vale, não se pode descuidar. Há perigos, há espinheiros, há valas que podem matar. Há atrativos que podem enganar e levar a ovelha por caminhos onde há riscos escondidos, perigos camuflados. Ao passar pelo vale, a ovelha experimentará que ali é um lugar de disciplina e vigilância redobrada. A vara e o cajado lhe ensinam essa verdade.
Outro aspecto notável dessa parte da caminhada de uma ovelha é a necessidade de uma proximidade ainda maior entre ela e o pastor. O vale é, em geral, sombrio e o anoitecer ali pode trazer trevas densas. Nesta circunstância não se pode ver ao longe. Nessa situação, o pastor não pode ser para a ovelha alguém de quem se fala, mas alguém com quem se fala.
É impressionante observar que, na narrativa do salmo 23, o escritor vem-se referindo ao seu pastor, usando a 3ª pessoa – "ele me faz repousar... ele me leva... ele me guia...". Mas quando começa a falar da passagem pelo vale, passa a usar a 2ª pessoa: "tu estás comigo". Já não fala a seu respeito, já não fala sobre ele, mas agora fala com ele; e sabe que não precisará temer coisa alguma porque a presença dele é garantida: "tu estás comigo". O pastor está presente e, ainda que as sombras sejam escuras, sua ovelha pode vê-lo e pode ouvi-lo porque bem perto dela é que ele vai.
Ali no vale, o pastor já não é para a ovelha aquele que vai à frente ou que a protege na retaguarda: é, antes, aquele que vai ao seu lado, promovendo a intimidade necessária àquela que, com ele, desce ao vale.
O vale é sombrio e, muitas vezes, trata-se da sombra da própria morte. E é aí que está a grande diferença entre esse frágil animal na sua relação com seu pastor e o homem ou a mulher que têm no SENHOR o seu pastor. O pastor desse animalzinho acompanha-o até ali – até o vale da sombra da morte; mas o SENHOR é o pastor que não somente nos acompanhará até o vale, mas também nos fará cruzá-lo, conduzindo-nos a habitar na Sua Casa, para todo o sempre.

segunda-feira, setembro 11, 2006

Tirando força da fraqueza


"Se te mostras fraco no dia da angústia a tua força é pequena"
Provérbios 24.10

Há dias que nos parecem muito mais difíceis que outros, carregados, inclusive, de algumas dificuldades que não enfrentamos costumeiramente. O interessante é que, pensando bem, em muitas dessas vezes, tais dificuldades nem são assim tão mais pesadas que aquelas que enfrentamos em outras ocasiões, nas quais não chegamos a ficar muito abatidos. Mas, então, por que estas exaurem tão completamente as nossas forças? Por que nos parecem tão únicas?
Parece que o problema é que, em determinados dias, estamos mais fracos, despreparados, indispostos e cansados do que em outros. É a tal da relatividade: há dias em que nossos problemas são tão grandes, mas assim o são em relação à nossa fragilidade. Tudo o que se quer nesses dias é reunir o pouco de força e disposição que nos restam e aplicá-las para desincumbir-nos apenas dos deveres inadiáveis. No entanto, os problemas vão-se apresentando, um a um, todos aparentemente muito maiores que nós. E, assim, o inadiável acaba sendo adiado.
Em dias assim, as palavras de Salomão, acima citadas, ressoam em nossos corações, sem que as possamos compreender. Estava o sábio falando de uma obviedade sem tamanho ao afirmar que quem se mostra fraco no dia da angústia, nada mais faz do que evidenciar que sua força é pequena? Não. Não pode ser isso...

Por outro lado, se entendemos que ele está fazendo uma afirmação de causa e efeito, somos levados a interpretar que a coisa que nos faz ter força pequena é o fato de mostrar-nos fracos no dia da angústia. Assim sendo, se alguém pretende ser forte no dia da angústia, terá de mostrar uma grande força. Nessa relação de causa e efeito, mostrando-nos fortes, fazemo-nos fortes. Estaria Salomão induzindo-nos a fingir força para adquirir força?... Não. Certamente também não se trata disso.

Uma boa metáfora para compreender a afirmação do sábio é aquela situação em que você está virando uma esquina e se vê frente a frente com um cão assassino, rosnando para você, pronto para estraçalhá-lo. Há quem diga que, numa situação assim, não se deve sair correndo para não demonstrar medo, mas é exatamente isso que eu faria. O fato é que, seja para encarar, seja para sair correndo, sua corrente sangüínea é invadida por uma over dose de adrenalina, de modo que você tem uma força especial, tanto para uma quanto para outra reação – no meu caso, para sair em disparada. Finda a experiência, sabe-se que aquela velocidade, aquela força não nos era própria, tiramo-la de onde nada havia. No momento do perigo, posicionamo-nos e nos dispusemos para o batalha.

É nisto que o sábio insiste: na hora da angústia, para que a nossa força seja grande, temos de fincar os pés, encher os pulmões, arregaçar as mangas e tomar posição para o embate: ter bom ânimo. "Se te mostras fraco no dia da angústia, a tua força é pequena". Forjamo-nos e adestramo-nos constantemente no tempo presente para as lutas do momento seguinte. Assim, lutando e vencendo, vamos ficando mais preparados e fortalecidos para prosseguir.

O oposto também é verdadeiro: a cada desistência nossa, a cada jogo em que o time adversário ganha de nós por "W.O.", a cada decisão de sentar à beira do caminho por considerar que a caminhada é longa demais para nós, a cada fraqueza assumida como final, perdemos a oportunidade de treinar e melhorar nosso preparo pessoal - é um crescimento a menos, um enfraquecimento a mais...

O único jeito de sermos fortes no dia angústia é aprender a colher, pela fé, onde nada há para ser colhido, tirando força da fraqueza, ir desenvolvendo a musculatura espiritual, firmando os tecidos emocionais e reestruturando também a constituição do corpo físico. É assim que, pouco a pouco, passo a passo, assumindo um perfil de vencedor, um perfil de pessoa forte, acabamos sendo fortes – no dia da angústia.

segunda-feira, agosto 28, 2006

Este é o meu nome...

"Disse Moisés a Deus: quando me perguntarem:
Qual é o nome do Deus que te enviou? Que lhes direi?
Disse Deus a Moisés: EU SOU O QUE SOU.
Assim dirás aos filhos de Israel: EU SOU me enviou a vós outros...
este é o meu nome eternamente,
e assim serei lembrado de geração em geração."
Êxodo 3.13-15


Sempre achei que "tomar o nome do Senhor em vão" significava muito mais do que se costuma pensar que significa. Tomar o nome do Senhor em vão não é apenas o uso desrespeitoso de seu nome, em meio a brincadeiras e deboches ou uso repetitivo sem pensar.
De acordo com o Aurélio, nome é a palavra que exprime uma qualidade característica ou descritiva de pessoa ou coisa; um epíteto.
Deus disse a Moisés que não teria por inocente aquele que tomasse seu nome em vão. Entendendo que tomar o nome do senhor em vão era pronunciá-lo de forma desrespeitosa, passaram a evitar pronunciá-lo, pensando, assim, fugir do castigo que sobrevem àqueles que desrespeitam o nome do Senhor. E, de tal modo fugiram de pronunciar o nome que, com o passar dos tempos perdeu-se a sua pronúncia e já não se sabia mais como dizê-lo. Mas o desrespeito para com o nome continuou tão presente quanto o castigo que tal desrespeito atraía.
Que dizia, então, o terceiro mandamento?
Lembro-me do salmo 23 que diz que o pastor guia as suas ovelhas pelas veredas da justiça por amor do seu nome. As ovelhas são timbradas com nome de seu dono. Seu andar desviado das veredas pelas quais anda o pastor envergonha-o, gera-lhe prejuízos na medida em que danos causados pelas ovelhas serão pagos por aquele cujo nome está escrito em seu dorso. Ovelhas teimosas, que andam fora das vistas de seu pastor, fora do alcance de sua vara e de seu cajado, estão tomando em vão o nome do seu Senhor.
Tomar o nome do Senhor em vão é tomá-lo do modo vazio como se tomam todos os outros nomes, já que a esse nome nenhum outro se compara. Os nomes buscam caracterizar os nomeados com as características que os nomeados querem encontrar em seus nomes. Como o cão que anda em círculos buscando morder o próprio rabo. Tomar o nome do Senhor em vão é tomá-lo como trivial, é tomá-lo sem se dar conta de que a essência de tudo mais ganha nele sentido e referência.
O uso do nome evoca aquele que por ele é nomeado. O nome é símbolo de seu possuidor. É por isso que, quando Moisés pediu para saber por qual nome Deus era chamado, ele disse: "Eu sou aquele que é", "EU SOU é o meu nome". Todo nome busca uma referência para caracterizar seu possuidor. Mas, não havendo uma referência sobre a qual Deus pudesse buscar identificação para si mesmo, conta a Moisés ser ele a referência para tudo que existe e se nomeia. Chama-se AQUELE QUE É, aquele em quem tudo existe e subsiste, por meio do qual tudo veio à existência. Seu ser dá sentido não somente aos nomes mas também aos seres nomeados.
Tomar o nome de Deus de modo significativo - e não vazio, e não em vão – é o mesmo que dizê-lo – em palavra ou nas ações do viver – entendendo estar nele o referencial de toda a existência. Tomar o nome do senhor de modo significativo é entender que só nele é possível encontrar sentido para a própria existência.
Muitas pessoas estão buscando auto-conhecimento, estão buscando um encontro com elas mesmas por meio de um mergulho no seu próprio interior. Mas esse mergulho é um mergulho no nada. Para encontrar-se é preciso encontrar AQUELE QUE É. Nele está a sustentabilidade do ser. Esse é o modo de tomar o nome do Senhor e não tomá-lo em vão.

terça-feira, julho 04, 2006

Eu, porém...

"Tinha eu quarenta anos quando Moisés, servo do SENHOR,
me enviou de Cades-Barnéia para espiar a terra;
e eu lhe relatei como sentia no coração.
Meus irmãos que subiram comigo desesperaram o povo;
eu, porém, perseverei em seguir o SENHOR, meu Deus."
Josué 14.7

Todos que já leram sobre a libertação do povo de Israel do Egito conhecem a história de Josué e de Calebe. Enquanto toda a geração considerada adulta por ocasião da saída do Egito não ultrapassou os limites do deserto e não experimentou o sabor de pisar e tomar posse da terra prometida, esses dois homens constituíram exceção. Em que diferiam dos demais?

O livro de Números, nos capítulos 13 e 14, narra o envio de doze dos príncipes do povo, um de cada tribo, para espiar e saber sobre a terra para a qual se dirigiam. Após o regresso, dez deles disseram terem visto lá "gigantes", acrescentando: "éramos, aos nossos próprios olhos, como gafanhotos e assim também o éramos aos seus olhos"; "Não poderemos subir contra aquele povo, porque é mais forte do que nós". Calebe, ao contrário – e confirmado por Josué – "fez calar o povo perante Moisés e disse: Eia! Subamos e possuamos a terra, porque, certamente prevaleceremos contra ela". Por qual razão um grupo se sentia tão impotente, enquanto o outro se sentia tão confiante após regressarem da mesma missão?

A diferença entre os dois grupos era o objeto de seus olhares. Enquanto os dez olhavam para os gigantes e, conseqüentemente, descobriam-se pequenos como gafanhotos, Calebe olhava para o tamanho de seu Deus e Josué afirmava: "Se o SENHOR se agradar de nós, então, ele nos fará entrar nessa terra e no-la dará. Tão-somente não sejais rebeldes contra o SENHOR e não temais o povo dessa terra; retirou-se deles o amparo; o SENHOR é conosco; não os temais"...

Essa é a idéia de fé. Em que insistimos em colocar nosso olhar: no visível ou no invisível? Mais tarde, ao comentar esse episódio, Calebe – já com seus 85 anos – ainda se lembra de ter relatado "como sentia no coração". Não relatou conforme atestavam os seus olhos, mas conforme cria em seu coração. Essa é a grande diferença.

E o Deus que honra nossa confissão de fé confirmou a palavra de ambos os grupos. O grupo dos dez e quantos mais creram neles diziam: "não poderemos entrar, não haveremos de vencer"... Essa palavra nada possuía de místico, mas era o fruto daquilo em que criam: "não somos capazes e certamente não poderemos derrotar os inimigos". Deus confirmou a confissão deles, dizendo: "De fato, não entrarão". E nenhum deles adentrou a terra prometida.

Por outro lado, Calebe e Josué, conquanto soubessem que os obstáculos eram grandes e que haveriam de lutar contra inimigos maiores que eles, não fixaram nisto os seus olhos. Antes olharam para a grandeza de seu Deus e CRERAM NELE para dar-lhes a vitória.

E o Deus que honra nossa confissão de fé confirmou a palavra desses dois homens – que diziam "o SENHOR é conosco, ele nos fará entrar nessa terra e no-la dará". De toda aquela geração adulta que saiu rumo à terra prometida somente Calebe e Josué entraram nela e a possuíram.

Ainda hoje ecoa a expressão da fé que teve Calebe no Deus que honrou a sua confissão; da fé, cuja esperança Deus sustenta; da fé que age confiando no Deus invisível em lugar de deixar-se guiar pelas tão visíveis circunstâncias; da fé naquele que traz à existência o que jamais existiu, que traz à visibilidade o objeto da esperança sabedora de que aquilo que se aguarda pela fé nunca foi menos real pelo fato de que ainda não podia ser visto.

Aqueles dois deixaram o exemplo de que é necessário ser muito firme nas próprias convicções, deixaram o exemplo de que não é sábio seguir a multidão porque nem sempre a maioria está com a verdade e de que aquilo que vêem nossos olhos nem sempre pode ser a base de nossas ações. A boca sempre fala do que está cheio o coração. Cuidemos para que ele esteja cheio de confiança no Deus Todo-Poderoso, porque ele honra a nossa confissão.

quinta-feira, junho 22, 2006

Um altar para um encontro com Deus


...não apresentarei ao SENHOR, meu Deus,
ofertas que não me custem nada.
Assim, Davi comprou a eira e os bois.
...o SENHOR se tornou favorável ...
2 Samuel 24. 24-25

Tanto os livros de Samuel como parte dos livros das Crônicas contam a história do rei Davi. Samuel apresenta-o como pecador, falho, pai de família ausente, praticante da poligamia, enfim, apresenta o rei Davi – homem. Isso é muito relevante se lembrarmos que Samuel é o último dos juízes, e foi substituído por Saul, o primeiro rei, o qual foi sucedido por Davi, chamado por Samuel de "homem segundo o coração de Deus".
O capítulo 24 do Segundo Livro de Samuel narra mais uma das experiências do rei Davi. É assim que Samuel encerrará sua narrativa sobre o rei Davi: o homem pecador, o pecador quebrantado e contrito, arrependido e perdoado.
Provação, tentação e queda
A narrativa começa com a apresentação de um grande problema: Deus está irado com Israel e incita seu rei, Davi, a levantar o censo de Israel e de Judá. Diante do levantamento do censo, Davi será tentado a assumir uma atitude de soberba, orgulho e vaidade.
Tiago (1.12-13) usa uma palavra grega que ora é traduzida por provação, ora por tentação (peiramós). E o escritor é enfático em esclarecer que Deus não tenta ninguém. No entanto, ele prova os seus. A prova muitas vezes vem a existir em um coração tomado do pendor da carne que dá para a morte. Ou seja, diante de algumas provas, a pessoa prefere entregar-se a seus próprios desejos, por vezes carnais, inimigos de Deus. É quando então, diante da provação seus desejos caídos, pecaminosos o tentam.
O diabo tenta. O coração do homem caído tenta. A tentação ou vem de dentro da própria pessoa ou vem de Satanás e, nesse caso, trabalha em cooperação com o coração do ser humano caído. Ele sozinho não tem poder de forçar à prática do pecado, mas contribui para aumentar as probabilidades da queda, promovendo a intensificação do desejo do coração do homem caído. A tentação só procede de fonte corrompida. Jamais de Deus.
Como pode ser isso? Deus incita Davi a fazer algo que, mais tarde, será punido como pecado. Se Davi tivesse levantado o censo sem ter-se envaidecido pela grandeza do seu próprio reino, não constituiria isso um pecado. Mas Davi, cujos valentes o autor do livro acabara de enumerar, sentiu a grandeza de seu reino, seu grande poder de guerra, sua força para as batalhas. Eis o pecado que jaz à sua porta. Como Deus dissera a Caim: "O teu desejo será contra ti. A ti cumpre dominá-lo". Coisa que Davi não fez.
Joabe, General do rei, percebe sua atitude errada diante da prova, esforça-se para dissuadi-lo de realizar o censo, mas o rei está resolvido a fazê-lo.
Fuga para Deus, em contrição e busca de perdão
Feito o censo, engrandecido o rei em sua vaidade e glória pessoal, aproximam-se as conseqüências do erro. Mas, então, manifesta-se o lado de Davi que sempre agradou a Deus: um coração capaz de quebrantar-se até o pó. Davi era assim apresentado: como um pecador sim, mas um pecador que não endurece, em cuja vida o pecado não cristaliza, não cria mofo, não envelhece. Sua maior habilidade não era a do guerreiro, não era a do grande administrador do reino. A grande marca distintiva de Davi era sua prontidão para arrepender-se verdadeiramente e mudar o rumo de suas ações. Era capaz de sentir uma tristeza tal por suas próprias faltas, de rasgar vestes, alma e coração na presença de Deus; mostrar-se um pecador que, consciente de seu pecado, corre, não para longe de Deus a fim de evitar encarar seus próprios pecados – mas corre para Deus. Como um menino travesso que, depois de feita a travessura, corre e se agarra às pernas do pai, com tanta proximidade, com tanta força, que chega a amolecer o coração do pai. Como o menino travesso cujo pai docemente o faz largar suas pernas,fita-o de frente e diz: "a vidraça do vizinho terá de ser paga", "a roupa rasgada terá de ser emendada", "o vaso quebrado precisará ser substituído": "vou pagar o preço e quitar a sua dívida. Mas você precisa saber que suas ações têm conseqüências. Alguém tem de pagar a conta".
É por isso que Davi se entristecia com o seu pecado. É por isso que ele é um bom modelo para repensarmos nossas vidas e entristecermo-nos com a tristeza de Deus – movida pelo Espírito – entristecermo-nos por causa de nossos pecados e corrermos para Deus, sabendo, com gratidão, que ele ficou com a conta a ser paga e nós com as marcas que não evitamos deixar em nossos caminhos.

Reconciliação: nova oportunidade para a obediência
Como foi no caso de Pedro que negou Jesus três vezes, à reconciliação junta-se a oferta de uma nova oportunidade para a obediência. No caso de Davi, Deus lhe dá como mandamento erguer um altar. Um altar é um lugar de encontro. Uma vez que o pecado separa o homem de Deus, Deus quer promover o encontro.
Quando Pedro, o discípulo, negou Jesus três vezes, este foi ao seu encontro na praia, durante uma pescaria. Ele, que conhecia o coração quebrantado de seu discípulo, quis então lhe oferecer a oportunidade do encontro. O encontro se dá no altar do perdão. O encontro se dá no altar da gratidão.
É isso que Davi busca simbolizar. Deus lhe ordenara que o altar fosse numa eira, cujo dono era Araúna. Davi sabia que o altar do seu encontro com Deus teria de ser numa eira que lhe pertencesse. Não se promovem encontros pessoais com Deus no altar de adoração dos outros. Na eira de outros. O altar deveria ser de Davi, na eira de Davi, para o encontro de Davi com o seu Deus. Davi compra a eira. Paga por ela o preço devido.

O simbolismo elaborado por Davi consistia da construção de um altar para a oferta de sacrifícios. Não há sacrifício sem altar. Não se justificam altares sem sacrifícios. Constroem-se altares para oferta de sacrifícios. Depois de comprar a terra, Davi compra também os bois por preço devido, embora Araúna lhos quisesse dar de graça: "não oferecerei ao Senhor sacrifícios que não me custem nada". Ao contrário do que muita gente pensa, Deus espera excelência em nossas ofertas. Deus é digno de nada menos que o melhor.

Há um preço a ser pago. A dívida que era impagável, do ponto de vista humano, Jesus já quitou com o preço de sua própria vida. O preço a ser pago agora no serviço a Deus, na adoração, é o preço da honra. Quando o profeta Malaquias disse que o povo estava desprezando a Deus através de seus sacrifícios de péssima qualidade, estava dizendo que o povo havia deixado de honrá-lo. Não se presta honra sem esforços, sem custos, sem trabalho. Não se presta honra ofertando o que não possui qualidade.
Adquirida a terra e os bois, Davi oferece holocaustos e sacrifícios pacíficos. O animal que morria no lugar do adorador pecaminoso representava a redenção da morte merecida pelo pecador. Todavia, sangue de animal jamais pôde trazer perdão de pecados. Deus ensinou que assim se fizesse como um ato simbólico que apontava para um sangue que, mais tarde na história humana, haveria de ser derramado – o sangue de Jesus Cristo – necessário e suficiente para a total reconciliação entre o homem e Deus.
A narrativa encerra-se afirmando o fato de Deus tornar-se favorável para com o pecador que, em lugar de endurecer-se em seu coração, reconhece-se faltoso e corre para Deus em busca de perdão e restauração do relacionamento com ele.

quarta-feira, junho 07, 2006

Olhos para ver, coração para perceber...

... não podiam crer, como disse o profeta Isaías:
Seus olhos estão cegos e endurecidos os seus corações,
para que não vejam com os olhos, nem entendam com o coração...
e sejam por mim curados. João 12.39,40

Nessa época do ano – desde o inverno até o início da primavera –, a maior parte da cidade está enfeitada de Ipês rosas, roxos, brancos e amarelos. É nada menos do que um espetáculo gratuito à mercê do olhar dos transeuntes. No entanto, isto passa despercebido para a maioria das pessoas. O que poderia estar roubando a cena de tão ilustres atores?

Talvez as pessoas não lhe voltem os olhos por acharem essa cena bucólica demais. Por serem defensores dos ideais modernos da vida urbanizada, tecnologicamente enfeitada pelas altas torres de TV e de telefonia, por exemplo. Mas as flores que caem ainda reclamam, sedutoramente, criando uma cobertura colorida para o chão do centro da metrópole, próximo também dos trilhos do veloz metrô. É possível que haja gente que ainda pensa maquinalmente que a cor do ferro e do concreto é que embeleza a cidade. Mas, certamente, isso não explica tudo, talvez não explique nada...

A explicação, provavelmente, é outra. Há olhares que se dispersam para outros valores, para bens materiais mais duradouros que a flor que, hoje, enternece, mas que completa seu curso de vida em não muito mais do que alguns dias. Há muitos que sonham o sonho do capitalismo enganador e seus olhos só pairam nas últimas versões de carros com cores metálicas impactantes ou nas grandes construções – que poderiam elas habitar, na roupa da moça bonita, que alguém sonha vestir para, quem sabe, também se tornar igualmente bela.

Mas há, ainda, um grupo de cujos olhos as encantadoras flores dos ipês de muitas cores são, de fato, objeto. Podia-se dizer até que eles as olham, mas não as vêem. E por que não? E se as olham e não vêem, o que vêem, então? Seus olhos físicos batem em qualquer coisa no caminho, pousam até mesmo sobre as flores da cidade. Mas os olhos da alma não fazem o mesmo. Esses ainda olham as cenas de um passado recente ou longínquo que impressionaram a retina e se cristalizaram na mente. Cenas como a da mão ríspida do pai que, no amanhecer do dia, repousa sobre o travesseiro como que descansando do pesado trabalho de, num ato de ira, expressão de ódio, fazer o filho entender o quanto o despreza. Cenas como a da despedida do amor que nasceu tão cedo no coração da menina, a menina que, de tão apaixonada, ofereceu toda prova a quem só queria aproveitar-se e partir; a cena que vê, ao olhar para si mesma e perceber que está se multiplicando por dois.

Olhos para ver o quê, se o coração é que percebe?! Percebe o desejo de compartilhar a vida com alguém que saiba amar verdadeiramente, alguém que tenha respeito. Percebe o desejo de ser visto do mesmo modo como parece acontecer às flores do ipê que se pintam de tantas cores e quer o mundo enfeitar. É! Esse desejo de ser objeto de um olhar demorado, encantado, comprometido...

É impressionante o quanto a natureza ensina o homem a ser humano. Aquelas flores passageiras fazem um discurso sobre a eternidade. Elas contam que são obra de um Artista que entende de cores e de formas, mas entende também de amor. Elas contam que pessoas são um poema que o Artista escreveu. E contam que Ele pode mudar suas histórias, transformando-as em histórias de pessoas que têm olhos para ver o que realmente mostram as flores dos Ipês, e perceber - dentro da moldura desse quadro - que seu Autor é a fonte de vida e de amor.

segunda-feira, maio 29, 2006

Peso da eternidade


Tudo fez Deus formoso no seu devido tempo;
também pôs a eternidade no coração do homem,
sem que este possa descobrir as obras que Deus fez
desde o princípio até ao fim.Eclesiastes 3.11

De repente bateu uma saudade enorme. Saudade de não sei o que, saudade de não sei quem. Na verdade nem sei se é saudade mesmo ou se é um desses deliciosos sentimentos que enchem o coração da gente, sem a gente saber o motivo, sem a gente saber de onde vem.
Outro dia, senti um aperto no peito, uma sensação que não era de todo ruim. Minha filha disse que era o peso da eternidade. Não... Não é que eu seja assim tão velha. De fato atravesso uma fase na vida que se costuma chamar de meia-idade. E se a idade ainda está pelo meio, certamente não sou assim tão velha. Mas acho que ela tinha razão: era mesmo o peso da eternidade, da infinitude. É muito engraçado pensar nisso. O coração da gente não tem mais do que o tamanho de uma mão fechada, mas, mesmo assim, consegue carregar qualquer coisa de eternidade, de infinito. É fato que, às vezes, ele dá sinais de suas limitações, como aconteceu comigo, no outro dia... e aquela sensação tão forte chega a fazer a gente chorar.
O grande sábio Salomão já tinha dito que Deus pôs a eternidade no coração das pessoas, mesmo sem elas entenderem. Esse sentimento de eternidade – essa infinitude – tem a extensão sem limites que essas palavras tencionam anunciar. E o que parece é que, quando nascemos, trouxemos essa informação de eternidade que deve ter entrado em nós, quando passamos do não ser para o ser e, mesmo sem perceber – ainda duas células apenas – viemos a existir. Quando ainda não tínhamos esse cérebro que pensa e nem essas entranhas que sentem, mas já tínhamos qualquer coisa em nós que funcionasse como se cérebro fosse para somar na memória, como se entranhas fossem para vislumbrar nossas sensações. E os anos que passam, os dias que se vão ficam tão pequenininhos porque acrescentam àquilo que sempre foi, àquilo que ainda, eternamente, será.
Deve ser uma coisa assim: eu estava em meu pai, quando ele ainda era um garoto pequenino e brincava de fazer carrinho de madeira na fazenda onde morava. Por sua vez, ele estava em seu pai, que estava em seu avô e, assim ad infinitum. Todas as suas histórias são minhas histórias...
De alguma maneira eu estava lá, quando o sol da Via Láctea nasceu, porque, assim como meu pai me carregou nos seus genes quando ainda nem pensava que podia uma moça namorar e eu vim a ser carne de sua carne, imagino que essa estrela, que tornou e torna possível a vida que habita a matéria no meu sistema solar, me permite dizer que sou energia de sua energia e que sua história também é a minha história.
Não acredito em reencarnação. Não acredito em pré-existência da alma. Acredito que o universo é uma declaração (ainda que cheia de limitações), daquilo que Deus é. Trino e Uno. A sua criação é diversa, mas é inter.
Pensar nessa coisa macroscópica ajuda a gente a saber mais de si mesmo. Fica mais fácil entender a nossa insignificância. Mas o paradoxo está em que fica também mais fácil entender, usufruir e sentir a grandeza de nossa significância. Saber que faço parte de um projeto muito maior do que eu, cujos princípios antecedem os inícios da antigüidade, atingindo a ilimitada eternidade. Um projeto no qual faço toda a diferença, já que minha existência contribui (como parte do projeto) a fazer as coisas serem como são nesse meu lugar no cosmos. Saber que o projeto vai além de mim e da minha passagem pela história humana, mas que, uma vez tendo sido, sempre serei ... e que, em outra ocasião, compartilharei dos resultados que esse projeto há de alcançar.
Sei que tem muita gente que não acredita nessas coisas. Acham que somos matéria que hoje respira e amanhã se consumirá, como se não houvesse uma pessoa que veste esse matéria e que dela se despirá, continuando pessoa naquela ocasião que tenho chamado de eternidade.
Sei que tem gente que pensa assim.
Só não sei como é que explicam essa saudade que enche o coração da gente assim, de vez em quando, sem a gente saber de que ou de quem, sem a gente saber nem mesmo se é, de fato, saudade ou se é, na verdade, esse sentimento de eternidade que Deus colocou no coração da gente.

quarta-feira, maio 24, 2006

Não fosse o SENHOR...


Não fosse Senhor...
"Não fosse o SENHOR, que esteve ao nosso lado ....
não fosse o SENHOR, que esteve ao nosso lado .... e teríamos sido engolido vivos;
as águas nos teriam submergido, e sobre a nossa alma teria passado a torrente;
águas impetuosas teriam passado sobre a nossa alma.
Bendito o SENHOR, que não nos deu por presa...
Salmo 124.1-6

"Tem dia que a gente se sente como quem partiu ou morreu" – já dizia a música do Chico Buarque. De fato, há dias em que a gente sente a vida muito pesada. É como se houvesse uma onda no ar, um tsunami à volta da gente, o qual nos lança de um lado para outro quando se tenta mesmo o menor dos movimentos.

Nessas ocasiões, o coração fica como se feito de gelatina fosse. As pernas se tornam trôpegas, os braços esmorecidos. Sente-se totalmente perdido, sem forças e sem direção. Desfalece-se a alma. De repente, a gente começa a se sentir pequeno demais diante da vida e é como se os passos precisassem ser maiores do que as pernas e o horizonte, então, diante dos olhos, tornasse-se maior do que o alcance do olhar.

É algo assim difícil de explicar... Perde-se a visão do todo e o olhar desce ao nível microscópico. Vê-se não mais o corpo, mas, em vez disso, vêem-se trilhões de pequeninas células com suas centenas de microestruturas, todas sobrecarregadas. De repente, o mundo – olhado assim microscopicamente – fica mesmo um mundo muito grande. De repente, não há força que baste para percorrer tamanha distância, lutar batalha tão renhida... parece mesmo que o dia ficou mais longo do que se pode suportar... e a nítida sensação que se tem é de estar-se vivendo em meio a uma guerra. E, conquanto seja necessário, não é fácil encontrar o caminho a trilhar no meio de um campo minado.

O escritor do Salmo 124, na ocasião em que o escreveu, certamente vivia uma situação semelhante a essa. Ele abre o coração e conta que se sentiu como se estivesse prestes a ser engolido vivo. Como se o rio da vida, de repente, tornasse-se em mar bravio e suas águas impetuosas o quisessem submergir, fazendo passar suas torrentes sobre ele. Nessa hora, todavia, ele não estava só. Seu Deus era sempre presente.

Passadas as grandes ondas, o salmista olha para trás e diz: "se não fosse o SENHOR, que esteve ao nosso lado... ah! Se não fosse o SENHOR...

Observando, assim, a experiência do escritor, fazemos coro com a sua voz e dizemos também: se não fosse o SENHOR... ah! Se não fosse o SENHOR que sempre esteve ao nosso lado... Nas horas de turbulência, quando as ondas queriam fazer-nos naufragar, elas nos teriam engolido vivos, elas nos teriam feito submergir... ah! Se não fosse o SENHOR...

Mas certo é que ele sempre esteve e sempre está ao nosso lado. O que nos falta, na maioria das vezes, é aprender a olhar para ELE, em vez de olhar para as grandes ondas. O que nos falta é aproveitar esses momentos em que nos sentimos tão pequenos, tão limitados, com as pernas menores que os passos que temos de dar, aproveitar que ganhamos consciência de nossa finitude e pequenez e, então, entender que o tamanho microscópico é uma característica não apenas nossa: também caracteriza as ondas que, EM RELAÇÃO A ELE, são igualmente pequeninas.

A questão não é recuperar uma visão grandiosa a respeito de nós mesmos. A questão é recuperar a visão da grandeza de Deus e confiança para corrermos para ELE porque, de fato, o mar é bravio e, nele, não dá pé.

Bendito o SENHOR que não nos deu por presa.

quinta-feira, maio 18, 2006

Apoio inabalável


...e não te estribes no teu próprio entendimento.
Prov. 3.5

Estive me lembrando de algumas vezes em que passei por períodos de grande prostração. Ficava assim como resultado de esgotamento físico que, por sua vez, resultava do excessivo trabalho, do labor nos estudos, de lutas com enfermidades na família. Além de tudo isso, somava-se o estresse gerado por situações desnecessárias, tais como a busca de atender as muitas expectativas das pessoas à minha volta, a indignação causada pelos juízos de valores de outros em relação à minha vida, cobranças de todos os lados. Lutas por fora, à volta da gente; lutas por dentro, consumindo da alma suas últimas reservas de energia.
Não pretendo tratar agora das circunstâncias geradoras daqueles estados de prostração. O que me veio à memória nesses últimos dias foi a lembrança do estado propriamente dito e de tudo que pude colher daquela luta.
Lembro-me de vezes em que ajoelhava para orar, para clamar a Deus por socorro. Naquelas horas pensava nas palavras do sábio: "e não te estribes no teu próprio entendimento" (Provérbio 3.5). Aprendi a não apoiar-me em mim mesma. Aprendi, naquelas horas, a apoiar-me em Deus em oração. Confessava-lhe meu total esgotamento, minha absoluta falta de reservas, quer no corpo, quer na alma. Sabia que sequer teria forças para levantar-me da posição em que me colocara para orar.
Assim, aquele cantinho escolhido para essa entrega total diante dele, para ali declarar o reconhecimento da completa falência que se apossava do meu ser –, aquele cantinho se tornava um estribo – semelhante àquele que acompanha a sela do cavalo e sobre o qual o cavaleiro apóia o seu peso para subir no animal. Aprendi, então, a não me estribar em mim mesma, em meu próprio entendimento.
O fato é que, sempre que passava por essa experiência, levantava-me renovada, refeita. Depois de todas as lágrimas vertidas, erguia-me com uma alegria que inundava o meu ser e com meu espírito cheio de paz.
(In)felizmente, a experiência de chegar ao ponto do esgotamento profundo não ficou no passado de minha vida. Talvez até pudesse dizer que existe uma tendência de serem essas experiências cada vez mais profundas, haja vista que o tempo vai passando, o corpo envelhecendo e seus limites vão-se tornando cada vez mais nítidos. Mas, em contrapartida, o amadurecimento advindo dos encontros com Deus nesses vales da vida estabelece muitas diferenças entre o tempo de agora e aquele que se foi. Cada vez estou mais firme no entendimento de que não há em mim mesma uma base sobre a qual estribar-me, e estou cada vez mais firme em minha confiança em que Deus é meu apoio estável, consistente, meu suporte absoluto.
Confie no SENHOR de todo o coração e não se apóie no seu próprio entendimento".

sexta-feira, março 03, 2006

Renovação que se prolonga


Pouco a pouco, os lançarei de diante de ti,
até que te multipliques e possuas a terra por herança.
Não os lançarei de diante de ti num só ano,
para que a terra se não torne em desolação
e as feras do campo se não multipliquem contra ti.
Êxodo 23.30-31
O texto em epígrafe é parte das orientações dadas a um povo que estava sendo tirado de uma terra onde tinham sido escravos por mais de 400 anos. Nele, seu Deus lhes faz uma promessa de desocupar a terra que já lhes pertencia desde antes de seus anos de escravidão e que fora ocupada por outros povos. Todavia, esclarece que não vai desocupá-la toda de uma vez, mas há de fazê-lo paulatinamente, à medida que eles se fossem multiplicando. Caso contrário, a terra poderia ser invadida por feras.

Essa narrativa me faz lembrar de uma coisa que ouvi, certa vez, de um psicólogo. Ele dizia que, quando lidava com situações em que as pessoas estavam inseridas em crises muito intensas e iniciadas já há muito tempo, as terapias nunca visavam a extinguir abruptamente tais crises. A razão é que, quando as pessoas lidam há muito tempo com situações que absorvem seu tempo, sua atenção e sua energia, elas vão se tornando dependentes de tais crises. Extingui-las, abruptamente, seria o mesmo que retirar-lhes a base de sua sustentação, do motivo pelo qual, em última análise, elas vivem. Desse modo, o terapeuta deveria trabalhar no sentido de conduzir essas pessoas a encontrarem novas fontes de motivação para a vida. E, somente, à medida em que coisas novas fossem ocupando o espaço em suas mentes e corações, é que poderiam ir desocupando-se das antigas ocupações.

É incrível pensar nisso. Existem pessoas que são sustentadas pelas mesmas coisas que as atormentam. Lembro-me de um trecho de um poema barroco, intitulado "A uma ausência" do escritor português, Antônio Barbosa Bacelar, que dizia justamente isso:

"Sinto-me sem sentir todo abrasado
No rigoroso fogo, que me alenta,
O mal, que me consome, me sustenta,
O bem, que me entretém, me dá cuidado"

De fato, Deus conhece a estrutura do ser humano. É isso que somos. Nosso ser não é mais que uma ausência. Ocupamo-nos desesperadamente das coisas que tocarem as nossas vidas. Às vezes, algumas delas tocam nossos corações, consumindo-nos e dilacerando-nos. E, no entanto, não buscamos extingui-las, porque sabemos que o vazio, a ausência, é pior que qualquer outro mal. Não sabemos viver uma vida sem propósito. Mas há propósitos que queimam como fogo, enquanto insistimos em pensar que eles apenas nos alentam.

Eu entendo que é por isso que, quando encontramos em Deus o grande e único propósito que nos sacia com o bem verdadeiro, ele nos conduz daí em diante, num tratamento que varia de uma para outra pessoa, numa perspectiva temporal. Conquanto a obra dele seja plena em nós desde o primeiro encontro – se morrêssemos ali, estaríamos prontos – , há uma caminhada a ser feita, durante a qual o Espírito dele vai enchendo a vida da gente de fruto e nos livrando dos ranços oportunistas e parasitários de uma vida velha. Se pensarmos bem, às vezes não temos, para com as pessoas, nem com nós mesmos, a mesma paciência que vemos em Deus.

Quando o povo que fora libertado de sua escravidão, foi levado à terra que outrora era deles e agora voltaria a ser, eles tiveram que aprender a sabedoria de esperar a desocupação paulatina da terra, a qual iria acontecer na mesma medida em que fossem se multiplicando. Tomar posse da terra envolveria um processo de dupla face. Por um lado, era preciso que a terra fosse desocupada; por outro, era preciso crescer. E tudo isso num dinamismo tal que fosse capaz de impedir a acomodação na situação de crise.

Esse processo me ensina muitas coisas: É preciso saber quem sou, saber que sou distinto daquilo que invadiu a minha terra, o meu espaço, a minha vida, seja lá o que for. É preciso, ainda buscar ocupar a herança que me foi dada, o que farei na mesma proporção em que aprender a despir-me do que cheira à antigüidade, na mesma proporção em que aprender a despedir-me dos fantasmas que se negam como tais, na mesma proporção em que valores novos passam a encantar o meu olhar. É, assim, através deste processo, que vou deslocando o meu investimento de tempo, atenção e energia para as coisas que são totalmente novas.

quinta-feira, fevereiro 23, 2006

Quando um ladrão é posto para cuidar do dinheiro


"Judas disse isso, não porque tivesse pena dos pobres,
mas porque era ladrão.
Ele tomava conta da bolsa de dinheiro e
costumava tirar do que punham nela".
João 12.6
Com exceção de Lucas, que cita o nome Judas uma única vez, todos os outros evangelistas citam-no duas vezes. Mateus e Marcos citam-no quando listam os 12 chamados para serem discípulos e quando esse procura os principais sacerdotes para vender o serviço de entregar-lhes Jesus. Lucas cita-o apenas para identificá-lo como traidor. João é quem o apresenta da maneira mais negativa das quatro narrativas.
A primeira vez que João fala de Judas, eles estão na casa de Lázaro. Foi nessa ocasião que Maria quebrou o vaso de precioso perfume sobre os pés de Jesus. João conta que Judas – aquele que estava para trair Jesus – fez referência ao ato de Maria como um desperdício, pois aquele perfume poderia ter sido vendido e o dinheiro dado aos pobres. Todavia, acrescenta João, a observação de Judas devia-se não ao seu cuidado para com os pobres, mas ao fato de ser ele um ladrão que tirava da bolsa de dinheiro do grupo dos discípulos – pela qual era ele o responsável – aquilo que nela era lançado.
A outra vez em que João se refere a esse discípulo é quando estão todos à mesa para a última ceia e, "tendo já o diabo posto no coração de Judas Iscariotes, filho de Simão, que traísse a Jesus ..." Jesus anuncia que "aquele que come do meu pão levantou contra mim seu calcanhar ..., aquele a quem eu der o pedaço de pão molhado". "Tendo-o molhado, deu-o a Judas, filho de Simão Iscariotes. E, após o bocado, imediatamente, entrou nele Satanás. Então, disse Jesus: O que pretendes fazer, faze-o depressa."
Não considerando todas as explicações que se dão alhures sobre Judas ser um revolucionário que pretendia forçar Jesus a aceitar a posição de rei-libertador, sendo esse o motivo por que o traiu – explicações essas, ou tentativas de explicações, à parte, o fato é que Judas tinha um problema para lidar com o dinheiro. A referência de João a ele como alguém que não suportava uma homenagem feita a Jesus à custa do derramar de um perfume que poderia ter sido vendido por trezentas moedas de prata, a ponto de justificar o seu incômodo diante do ato de Maria, com uma pretensa preocupação com os pobres – tudo isso – dificulta ter dele uma visão de um revolucionário em busca de libertação política para sua gente.
O mais intrigante, contudo, é ser justamente ele o responsável por "levar a bolsa". Teria sido ele comissionado pelo próprio Jesus? Teria ele se oferecido para esse exercício? A questão é que, tendo recebido essa responsabilidade do próprio Cristo ou não, certamente ele era o responsável pela bolsa com o aval do Mestre, o qual a todos conhecia. Pelo que parece seus atos furtivos não eram desconhecidos nem mesmo dos outros discípulos.
Dessa posição aparentemente passiva de Jesus em relação aos assaltos de Judas à bolsa, salta ao olhar o entendimento de que o dinheiro era, de todas as riquezas, a menos importante para ele. Se a administração da bolsa tomava tempo e era trabalhosa, era preferível que os outros discípulos ficassem liberados dessa responsabilidade, a fim de cuidarem de fazer crescer e aumentar outras riquezas de valor real, tal como a divulgação do evangelho, a consolação dos que choram, a cura dos quebrantados de coração, a proclamação da libertação para os oprimidos e cativos sob qualquer espécie de dominação, o apregoar do ano aceitável do SENHOR e a tarefa de pôr sobre os que estivessem de luto uma coroa, em vez de cinzas, óleo de alegria, em vez de pranto, veste de louvor, em vez de espírito angustiado (Isaías 52).
Pensar que a Judas foi delegada a tarefa de cuidar dos assuntos ligados diretamente ao dinheiro pode fazer que se pense em muitas coisas: uma, mencionada acima, que o dinheiro é, na verdade, a menor das riquezas; outra, ligada, ao trabalho de Deus nos homens, concedendo-lhes a oportunidade de assumir uma atitude diferente, ao outorgar-lhes responsabilidades ligadas justamente às suas principais fraquezas. Pode-se falar, ainda, de que, conhecendo ele todos os corações humanos, mesmo assim, não antecipa seus deslizes, mas age para com os seres humanos com longanimidade; com conhecimento, sim, mas sem desconfiança, até os limites da própria traição, como fez Jesus.
Que responsabilidades Deus lhe outorgou? Pense nelas como atos de tratamento de Deus para com a sua vida.

sexta-feira, fevereiro 17, 2006

A casa ficou cheia do perfume


Ela derramou o perfume nos pés de Jesus.
E encheu-se toda a casa
com o perfume do bálsamo
João 12.3

Quando Jesus esteve nesse mundo, várias pessoas o seguiam, formando, muitas vezes, uma verdadeira multidão. Algumas dessas pessoas haviam sido chamadas nominalmente por ele mesmo para que o acompanhassem: eram os 12. A esse grupo restrito de discípulos que o seguiam mais de perto outras pessoas se agregaram. Para ambos os grupos, de modo especial para os 12, ele disse mais de uma vez que sua missão entre os homens era dar a sua vida a fim de resgatá-los e garantir-lhes vida eterna em comunhão com Deus, o Pai.
Essa mensagem, entretanto, chegava a ser insuportável para alguns de seus seguidores. Era assim para alguns, pelo muito que o amavam; para outros, pela esperança que nutriam de que ele assumisse a glória humana de – como seu rei – libertá-los da dominação estrangeira. Davam a entender, na verdade, que não compreenderam o que ele lhes dizia sobre sua missão.
Uma mulher chamada Maria, contudo, demonstrou ter compreendido a profundidade da missão de Jesus e a necessidade humana de que ele a cumprisse. Era ela irmã de Marta – que se esforçava com o fim de proporcionar a Jesus deliciosas ceias. Era também irmã de Lázaro, aquele cuja morte o comoveu e o moveu a chorar diante dessa realidade que ele veio para mudar através de sua própria morte. A este ele ressuscitou dos mortos, demonstrando seu poder e a autoridade que lhe fora delegada pelo Pai. Eram Marta, Maria e Lázaro: todos seus amigos pessoais.
Algum tempo depois do emocionante acontecimento em que ele chamou Lázaro de volta à vida, foi Jesus recebido em casa de seus amigos os quais lhe ofereceram um jantar. Foi nessa ocasião de estreita proximidade e comunhão com o Amigo, que Maria demonstrou o alcance de seu discernimento e de seu amor: "pegou um frasco cheio de um perfume muito caro, feito de nardo puro e o derramou nos pés de Jesus, enxugando-os com os seus cabelos, de modo que toda a casa se encheu daquele cheiro."
Quem entende um pouco de perfumes pode compreender a grandeza da atitude de Maria. Aquele ato constituía um verdadeiro ritual. De fato, um estudo da história dos perfumes mostra que, inicialmente, eles eram utilizados somente em rituais religiosos, quando eram queimados em oferenda à divindade. Só posteriormente passou a ser utilizado para outros fins.
Quando Maria derramou o perfume sobre os pés de Jesus, houve quem achasse o feito um desperdício. Mas o próprio Jesus advertiu que a deixassem guardar aquele ato para o dia do sepultamento dele. De fato, ela estava demonstrando sua compreensão das palavras ditas por ele tantas vezes, ao falar de sua missão.
Ao mesmo tempo, derramar o perfume significava a profunda adoração que ela prestava ao Mestre, reconhecendo-lhe da divindade, da mesma forma que os magos vindos do Oriente, por ocasião do nascimento de Jesus, trouxeram-lhe, entre seus presentes, perfumes.
Uma das coisas que mais chamam a atenção nessa atitude de Maria é o fato de ela reconhecer dele a divindade e prenunciar o seu sepultamento. Há algo de grandioso demais no Deus que dá a sua vida para resgatar a de seus amigos; no feito do Deus que permite que sua vida seja consumida, derramando-se como um perfume que se espalha no ar.
Maria expressava seu entendimento de que, tal como o perfume, somente a vida doada, entregue e derramada poderá encher a casa com seu delicioso aroma. Ela entendia que essa era a missão de Jesus ao vir ao mundo e compreendia, ainda, que ela, como discípulo dele, era chamada para imitar-lhe o exemplo, permitindo que sua vida fosse desgastada e consumida na mais profunda, sincera e completa adoração ao seu Deus.

quinta-feira, fevereiro 02, 2006

Procurando pérolas finas



"O Reino do Céu é também
como um comerciante que anda procurando pérolas finas.
Quando encontra uma pérola que é mesmo de grande valor,
ele vai, vende tudo o que tem e compra a pérola.
Mateus 13. 45, 46

No texto acima, Jesus usa a metáfora do comerciante de pérolas no intuito de facilitar um pouco o entendimento de seus ouvintes acerca do Reino do Céu. Em seu discurso no sermão da montanha, ele dissera que a ansiedade em relação a coisas que estão fora de nosso controle, em geral, levam-nos a viver a vida por antecipação, cheia de pré - ocupações. Afirmou que, em vez de cultivar tal ansiedade, nossas buscas deveriam focalizar o Reino de Deus e a sua justiça, antes de tudo mais.

Mas o fato é que esse acerto na ordem de prioridades das coisas na vida está profundamente ligado àquilo que desejamos. Cada objeto de nossos desejos representa um tesouro, uma pérola valiosa. Passamos a vida procurando pérolas, pérolas finas, pérolas preciosas.

Há pessoas que têm uma vida afetiva confusa e tentam relacionar-se intimamente com muitas pessoas, simultaneamente. Todavia, em geral, a intimidade que alcançam com elas não é mais do que a do nível físico. No dia em que uma pessoa dessas encontra alguém cuja alma une-se à sua e descobre-se numa relação em que a intimidade alcança e ultrapassa o nível das emoções e atinge os lugares mais recônditos do seu ser, sua alma, seu espírito – nesse dia – são capazes de deixar cem relações superficiais, ou até mais, para usufruírem uma única – intensa e intimamente. Trata-se de alguém que achou uma fina pérola, de grande valor.

A metáfora aplica-se bem aos relacionamentos pessoais. Mas aplica-se também a todos os outros níveis de nossas vidas: carreira, pesquisas, projetos, crenças...

A parábola mencionada acima usa tal metáfora para falar de uma pérola que é mais preciosa do que qualquer outra fina pérola que já tenha vindo ocupar um bom lugar numa ordem certa nas prioridades de nossas vidas. A pérola é de todo preciosa e tão preciosa é que torna difícil dizer se a possuímos ou ela é quem nos possui. Para possuí-la ou ser por ela possuídos, seríamos capazes de entregar todas as mais finas pérolas que buscamos e adquirimos ao longo de nossas vidas: nossos relacionamentos preciosos, nossas frutíferas e dignas carreiras, nossas relevantes pesquisas, nossos projetos imprescindíveis, nossas crenças mais antigas...

A crise, a angústia, a grande questão de todo ser humano é essa: a necessidade, o desejo de achar a pérola de grande valor. O perigo é encontrá-la e não se dar conta disso e continuar atribuindo às outras coisas um valor maior do que elas realmente têm.
Não há nada mais precioso do que encontrar a pérola de grande valor. Não há nada mais precioso do que viver conscientemente nossa posição de cidadãos do Reino do Céu, entendendo que esse é o grande tesouro, a pérola de valor inestimável.

quinta-feira, janeiro 26, 2006

Eles é que se preocupam com essas coisas...


"Por isso eu digo a vocês: não se preocupem com a comida e
com a bebida de que precisam para viver nem com a roupa de
que precisam para se vestir. Afinal, a vida não é mais
importante do que a comida? E o corpo não é mais importante
do que as roupas? E nenhum de vocês pode encompridar
a sua vida, por mais que se preocupe com isso."
(Mateus 6.25 e 27)

Ouvi uma história uma vez em que um índio conversava com um branco e aquele perguntou a esse:
- Por que você corre o tempo todo e trabalha até ficar esgotado?
- Para assegurar-me de que, depois de minha partida, meus filhos terão onde morar e do que viver – respondeu o branco.
- Não procedemos assim – disse o índio – porque acreditamos que a mesma natureza que nos supriu em relação a essas necessidades também suprirá nossos filhos.
Há um trecho do sermão da montanha, no qual Jesus adverte aos seus seguidores que não se empenhem em acumular tesouros sobre a terra, porque aqui a traça e a ferrugem corroem e os ladrões roubam. Além disso – dizia ele – onde está o tesouro do ser humano aí, também, está o seu coração. Advertia ele, ainda, de que, quando os bens se tornam deuses sobre as pessoas, elas ficam com os seus corações divididos.
Ele bem que entendia que tal preocupação em ajuntar riquezas – como aquele branco esclareceu ao índio – é resultado da preocupação com o que se haverá de vestir, de comer e beber, com a preservação da saúde do corpo e com o alongar-se da vida.
Quando ouvi aquela pequena história do diálogo entre o branco e o índio, percebi sua sabedoria em entender que ajuntar tesouros onde esses são consumidos ou roubados é sinal de tolice. Tolice que advém da preocupação desesperada com a vida – mas tolice.
Sábio é perceber os limites de nossos poderes de controlar o que quer que seja. Não podemos garantir a preservação de nossos bens – nem os materiais, nem os relacionados com o nosso corpo, nem com o alongar-se da vida. Jesus mostrou que sábio é entender que Deus é quem veste a erva do campo, alimenta as aves que voam e muito mais faz por aqueles que crêem nele – os seus filhos.
Não nos inquietemos com tais pré – ocupações. Antes, ocupemo-nos em buscar, em primeiro lugar, o reino de nosso Pai e a sua justiça. Ele conhece nossas necessidades. Ser-nos-ão supridas por nosso zeloso Pai e Rei.
Estas preocupações são próprias daqueles que não entraram na relação de Pai e filho com Deus, na relação de servo do Rei Jesus. Eles é que se preocupam com essas coisas.

quinta-feira, janeiro 19, 2006

Sempre e nunca


"O fogo nunca se apagará no altar; deverá ficar sempre aceso."
(Levítico 6.13)

Esse é um texto bastante carregado de simbolismo, assim como todo o ritual de que fala o livro de Levítico. Tanto os aspectos concretos presentes nesse texto – fogo, altar – são tremendamente simbólicos, como também o são aqueles outros mais abstratos – o não apagar, o ficar aceso, o nunca, o sempre.

Não pretendo aprofundar a temática de que trata o livro. Apenas compartilho aquilo que é despertado em meu coração por todo esse simbolismo. E o que mais salta diante dos meus olhos está ligado ao aspecto abstrato do texto: o fato de que, no altar, o fogo estaria sempre aceso, nunca se apagaria. ‘Sempre’ e ‘nunca’.
O fogo no altar queimava as ofertas. As ofertas pelo pecado eram totalmente queimadas. E, ao queimá-las totalmente, o fogo se prolongava. Mas, ao final, só restavam cinzas. Cinzas que lembravam o arrependimento que moveu o coração do ofertante. Cinzas que lembravam o perdão concedido com base no sangue derramado, o qual, por sua vez, derramava paz no coração contrito.

Na verdade, não era o sangue do animal queimado em holocausto que quitava para com Deus a dívida do faltoso. Havia um outro – simbolizado por aquele –, sangue do Cordeiro que foi morto na eternidade, morto na história do homem. Esse, sim, era suficiente e necessário e válido: uma vida em lugar de outra vida - pleno perdão.

O fato do fogo nunca se apagar - mas ficar sempre aceso - faz a gente pensar no quanto o ser humano tem facilidade para errar.
Mas havia ofertas feitas em gratidão, adoração e que também contribuíam para o fogo manter-se aceso no altar. Essas outras ofertas eram queimadas apenas parcialmente.

Desse modo, o fogo que nunca se apaga faz a gente pensar na fraqueza e falibilidade humanas. Faz a gente pensar na necessidade e no benefício de uma postura de contrição contínua, de corações quebrantados, de arrependimento profundo e propiciador de recomeços. Faz a gente pensar na disposição de Deus em perdoar, na sua graça incomensurável.

Mas o fogo que nunca se apaga também faz a gente pensar numa postura de adoração, na gratidão como um estilo de vida, no reconhecimento da bondade e do cuidado de Deus como a força motriz e direcionadora de nossas ações e reações.
O fogo que sempre fica aceso faz a gente, ainda, pensar em perseverança, em constância, em longanimidade. Faz a gente pensar em ir ficando parecido com o nosso Pai, já que nele não há nem mesmo sombra de variação. Seus dons são irrevogáveis, suas promessas cumpridas cabalmente, sua palavra imutável, sua posição fiel e confiável.

O meu coração também é um altar e o fogo nele não pode nunca apagar. O fogo nele há de sempre arder.

l

terça-feira, janeiro 03, 2006

Graça, superabundante graça

"A terra, SENHOR, está cheia da tua bondade".
(Salmo 119.64a)

Há uma discussão entre algumas culturas quanto ao ponto do calendário em que realmente se inicia o ano novo. Para mim, o ano novo começou mais cedo do que de costume. Era o dia 21 de dezembro, quando, em minhas leituras bíblicas deparei-me com um texto que trazia uma verdade, muitas vezes já lida por mim, porém ainda não apreendida. Não até aquele dia. O texto dizia "a terra, SENHOR, está cheia da tua bondade" (Salmo 119.64a).

A filosofia que sempre caracterizou a minha maneira de olhar para a vida, para o mundo, para o ser humano, nunca foi muito como a daqueles que procuram ver o lado bom de tudo. Nunca gostei muito de síndrome de Polyana, a menina da novela que leva seu nome que, esperando ganhar uma boneca de presente, mas que em lugar disto ganhou um par de muletas, começou a alegrar-se pelo fato de não precisar delas.

Quanto a mim, olhava para o mundo sempre lembrando a queda do ser humano no pecado, a maldição resultante não só sobre ele e sua descendência, mas também sobre toda a natureza. O fato de que as melhores experiências da vida, ter filhos e gerenciar a Terra, haveria de ser feito em meio a dores e abundante cansaço é que enchia os meus olhos.
Naquela noite das minhas referidas leituras, todavia, senti que Deus me fazia relembrar e entender, de toda minha alma, talvez, pela primeira vez, que onde o pecado abundou, superabundou a graça.

Não podendo acreditar nos insistentes pensamentos, equivocados segundo minha perspectiva, de que houvesse gente boa no mundo, gente que realmente buscava o bem de outrem, e de que pudesse haver, na humanidade, qualquer esperança para ela mesma, resolvi nunca esperar nem tentar achar nada de bom por aí. Porque de fato não iria encontrar.

O que ocorre é que, decorrente de meu realismo naturalista, fui perdendo o entendimento da graça de Deus que faz a sua bondade encher a terra, ainda que seja ela uma terra caída em pecado e guardada para tempos de juízo e condenação.

É como João testemunhou sobre a Luz, o Logos: as trevas não lhe podem resistir. O sábio Salomão já tinha escrito que a luz do amanhecer surge justamente quando mais alta vai a madrugada, quando mais escura é a noite.

O profeta Jeremias exerceu o seu ministério no momento mais difícil que um profeta poderia fazê-lo. A profecia que vinha de Deus para ele anunciar ao povo era de ameaça e destruição e ele levava esta mensagem a eles exatamente quando essa mesma profecia estava sendo cumprida. Ele aprendeu uma estratégia para si mesmo e ensinou aos seus leitores e muita gente a tem praticado: "trazer à memória aquilo que pode dar esperança".
Conquanto tenha sido um profeta que exerceu o seu ministério em meio ao pranto, tinha uma atitude positiva.

Faltava-me aprender tal lição. E não se aprende isso a não ser como uma dádiva da operação do Espírito de Deus. Não há lugar onde o pecado que desgraçou a humanidade isente-a da graça de Deus. Isso é absolutamente paradoxal.

O ser humano des – graça – do tem oportunidade de experimentar a graça abundante de Deus.

terça-feira, dezembro 20, 2005

Aquietai-vos e sabei


Aquietai-vos e sabei que eu sou Deus.
O SENHOR dos Exércitos está conosco;
o Deus de Jacó é o nosso refúgio.
Salmo 46.10-11

Os autores do Salmo 46 ensinam que não há por que temer, mesmo diante de lutas e de provações. Descrevem uma imensa tempestade e contam de tempos de guerra que a tudo destrói. Convidam para buscar no SENHOR o refúgio em se habita seguro, por mais intensa que seja a tempestade, por mais rigorosa que seja a guerra.
Mas uma coisa é lutar em meio às tempestades que nos cercam e outra, muito diferente, é tratar com elas quando invadem nossos esconderijos secretos, os recônditos da alma e põem lama até a metade das paredes da casa que somos.
A tempestade que invade a alma é também instrumento de destruição. Quebra nossos tesouros antigos, dissolve os papéis de nossas lembranças, de nossos compromissos; mancha e embaça as nossas certezas e despedaça entradas e saídas, consumindo, assim, nossa liberdade – a possibilidade de ir e de vir.
Esse ambiente interior em nada difere da cidade sitiada, de muralhas rompidas, de estruturas destroçadas, com suas casas queimadas e pessoas aprisionadas e feridas.
Quando a cidade esmagada é o mundo interior – os nossos próprios corações –, quando o vendaval da tempestade escurece e torna escorregadio os lugares desconhecidos do espírito humano, já não é um refúgio que nos pode acalentar, mas é a fortaleza que vem como a esperança da alma.
Enquanto o refúgio é o lugar seguro para guardar-nos da guerra e da tempestade ao nosso derredor, a fortaleza é a segurança que age de dentro para fora, instalando, na base mais profunda do ser, a esperança como âncora da alma.
E a âncora não falha: desempenha sua função de conferir estabilidade. Ela não interfere na tempestade, não reduz a força nem a altura das ondas; não torna límpida a correnteza nem diminui a velocidade dos ventos. A âncora da alma – a esperança instalada pela fortaleza – interfere mesmo é naquele que enfrenta a tempestade, firmando, confirmando e fortalecendo o aflito e atribulado.
A razão de tudo isso é que há uma voz que fala do centro da fortaleza; uma poderosa voz que supera o som das muitas águas, o ressoar do vento tempestuoso e o estrondear de armas aterradoras . É isso o que ela diz: "Aquietai-vos". "Eu sou Deus"- estou no controle. "Faço cessar a guerra, quebro o arco e despedaço a lança, queimo os carros no fogo". Por mais intensa que seja a escuridão da noite tempestuosa, assegura a voz que vem do centro da fortaleza: "Estou convosco, aquietai-vos, estou convosco".