segunda-feira, dezembro 05, 2005

Meu refúgio e minha fortaleza



"Ainda que os montes que estão
no seio dos mares se abalem,
ainda que as águas tumultuem e espumejem
e na sua fúria os montes se estremeçam..."
Salmo 46.2
A instabilidade que se percebe na natureza é, provavelmente, resultado do dinamismo que está presente nas leis a que ela obedece, as quais têm, justamente, a função de conferir-lhe estabilidade.
Tudo no universo existe num dinamismo tal que, visto microscopicamente ou pelos menos mais de perto, nas unidades de seus eventos, mais parece a presença do caos. Mas o próprio caos não é ‘caótico’ no sentido de não possuir ordem.
Alguém poderia pensar que os filhos de Coré, na composição do Salmo 46, estivessem refletindo sobre a natureza e sua instabilidade; sobre as relações internacionais e sua instabilidade. Todavia, o Salmo trata da estabilidade e segurança que há em Deus: refúgio e fortaleza. É por isso que as idéias dos salmistas vêm na seqüência em que as encontramos.
Já de início, há uma assertiva "Deus é nosso refúgio e fortaleza". Como se vê, o olhar do compositor está firmado nos atributos de Deus, na segurança que disto procede, tanto da perspectiva interna quanto externa. As conclusões que seguem a assertiva inicial nela se baseiam.
Um perigo que se corre na leitura desse salmo é o de ignorar a palavra ‘portanto’ que estabelece uma relação gramatical de coordenação e não de subordinação entre as orações ‘Deus é o nosso refúgio e fortaleza... portanto não temeremos...". A palavra destacada é uma conjunção que enuncia uma conclusão (não temeremos), baseada no fato de que Deus é nosso refúgio e fortaleza". E por que alguém correria o risco de ignorar tão importante palavra? Por causa de uma outra conjunção que o salmista também usa, "ainda que", na seqüência do texto. Essa sim, cria um laço de subordinação desta oração em relação a "não temeremos". Outras palavras que teriam traduzido muito bem a idéia seriam embora ou conquanto. Tanto essas como as que aparecem aqui em epígrafe, falam de concessão, que o dicionário explica como sendo uma indicação de uma oposição ou restrição ao que se encontra expresso na oração subordinante. Diante dos fatores enumerados, o esperável é que muito se temesse, mas os salmistas dizem ... não ficaremos com medo.
Montes que se abalam, águas que tumultuam e espumejam, montanhas que estremecem são elementos normais de uma natureza que se transforma continuamente, num movimento dinâmico e condizente com suas próprias leis. Nesses elementos atuam forças muito maiores que aquelas que caracterizam os ainda mais dinâmicos e instáveis humanos mortais. Não temer é uma atitude daquele cujos olhos fixam-se não na turbulência dos montes e dos mares, mas no Deus que é refúgio – lugar onde alguém se abriga para fugir do perigo – e fortaleza – constância, segurança e solidez.
Isto posto, é inevitável concluir que não foi do meio da turbulência que os compositores do salmo 46 vislumbraram a Deus, como se estivessem sendo motivados a correr para o abrigo por causa do medo causado por rumores que vinham de todos os lados. Antes, foi do recôndito aconchegante e seguro, de dentro do lugar de refúgio, das alturas da fortaleza – de lá – foi que os salmistas contemplaram o caos e disseram: conquanto tudo se transtorne, nada temeremos.

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