sexta-feira, fevereiro 20, 2009

Muito mais que odre de água

"Abrindo-lhe Deus os olhos, viu ela um poço de água..."
(Gênesis 21.14-21)


Hagar “ganha” liberdade. E é assim que acontece. A mulher dera à luz um filho para sua senhora - que antes era estéril, mas que, depois, veio a gerar um filho de seu próprio ventre. Tempos depois, no entanto, o filho nascido da escrava caçoava do que fora gerado pela senhora. E isso que resultou na liberdade de Hagar: A dona da casa disse a marido “despede-a”. E ele, mesmo com pesar, a despediu.
Levantando-se de madrugada, proveu-lhes de pão e de um odre de água. Assim ele despediu mãe e filho. Saiu ela andando errante com o menino pelo deserto até a água do odre acabar. Finda a provisão de água, colocou o menino debaixo de um dos arbustos, afastou-se e sentou-se defronte – à distância – para que não visse o filho morrer. Perdidas as esperanças, esgotadas as forças, esquecidas as antigas promessas – ouvidas um dia junto a uma fonte de água, ela se senta no chão e chora. Agora, sem mais perspectivas que não fossem apenas a da chegada da morte, esquiva-se pelo menos de intensificar o próprio sofrimento de ver o filho agonizar até morrer.
O menino, no entanto, clama a Deus e este ouve a sua voz. Das alturas o anjo de Deus fala com Hagar, renova promessas antigas, abre-lhe os olhos para ver um poço de água. Hagar se ergue, então, enche o odre com água do poço e dessedenta o menino.
Não é sua primeira experiência com Deus junto a uma fonte de água no deserto. Na vez anterior, o anjo lhe perguntara “de onde vinha e para onde ia”. Ela se reconhecera fugitiva e foi orientada a retornar à casa, humilhar-se diante de sua senhora. Aquela intensa experiência levou-a a dizer “olhei eu para aquele que me vê”. Aprendera sobre si mesma, olhando no espelho do olhar daquele que a via. Tivera um encontro com o Deus-que-vê.
Nessa sua segunda experiência junto ao poço, descobre que o Deus-que-vê é também o Deus-que-ouve. Ele ouviu a voz do menino que clamava. Ela precisa terminar de aprender a lição com o Deus-que-vê – a lição que ensina a olhar e a ver. E ela precisa também aprender uma nova lição com o Deus-que-ouve – a lição que ensina a ouvir. Olhos e ouvidos viciados têm de aprender as novas lições.
Com o Deus-que-vê, Hagar aprendera a ver a si mesma, porque aprendeu a ver aquele que vê. Ela se viu no espelho dos olhos daquele que vê. Com o Deus-que-ouve, Hagar aprendeu a ouvir. E o que foi que ele lhe disse? “Não temas, porque eu ouvi a voz do menino, daí, de onde ele está".
Hagar aprendeu a ouvir o Deus-que-ouve. E aprendeu que as palavras do Deus-que-ouve - o Deus-que-vê, o Deus-que-fala – muito mais do que meras palavras ditas ao vento, são palavras que trazem à existência coisas que não existem – traz à existência fontes no deserto.
Mas, ao ir à fonte, Hagar obteve muito mais do que um odre cheio de água. Aquele era um momento em que ela podia perceber que depender da provisão humana é depender do que certamente – e muito depressa – acabará. Porque a provisão humana é provisória, passageira e finita. Melhor é depender do criador das fontes, aquele que tem poder para fazê-las brotar no deserto, no lugar exato em que desfalece o sedento. Há uma fonte – da parte de Deus – mesmo no deserto, e nela o odre pode ser reabastecido toda vez que dele a água se esgotar.
Muito mais do que um odre reabastecido, renovado em conteúdo, Hagar encontrara renovação de perspectivas. Aquele que lhe falou das alturas foi também quem lhe abriu os olhos para ver. Sentada ali no chão a chorar, Hagar nada podia ver porque, durante anos, seus olhos estiveram mirando perspectivas humanas de futuro. Viciaram-se na visão limitada do humanamente provável. Aquele odre cheio da água tirada de uma fonte no deserto é resultado de uma renovação de visão e do entendimento de que o seu futuro e o de seu filho consistiam numa história a ser escrita pelo próprio Deus. Aquele odre cheio de água resultou em compreender que a esperança de fazer a própria história à sombra da história de outro resulta em ficar sem nenhuma perspectiva no momento em que se é excluído do foco da história do outro.
Hagar, agora, com os olhos que foram abertos para enxergar o poço, podia ter suas perspectivas renovadas e vislumbrar o desenrolar de uma história ainda não contada, ainda não vivida, uma história baseada nos projetos de Deus para ela mesma e para o seu filho.
O odre-antes-vazio-mas-agora-cheio representava, para Hagar, o fim de uma jornada sem rumo, o ponto final de um andar errante pelo deserto. Ela, que antes sabia de onde vinha, mas não sabia para onde ia, tinha renovadas as promessas e o direcionamento de Deus. Sua vida não mais se resumia em sentar no chão para chorar à espera da morte, embora a morte fosse a expectativa lógica e certa para aquele cujas provisões humanas de água e de pão cessaram. Esperar a morte é esperar o humanamente óbvio. Ao renovar-lhe as promessas, entretanto, renovam-se-lhe, também, as forças, a disposição para levantar, para caminhar até a fonte, para erguer o filho, segurá-lo pela mão, para fazer dele um flecheiro, para conduzi-lo até o ponto de constituir sua própria família, para apoiá-lo até ver cumprida a promessa de ser ele um príncipe e tornar-se um grande povo.
Há muitas fontes que o Criador fez brotar nos desertos da vida, que não podem ser notadas pelos olhos de quem só vislumbra o aproximar-se da morte. Mas a provisão que não se vê não pode ser desfrutada. É preciso ter os olhos desvendados, ter olhos que aprenderam a enxergar.
Como aconteceu com Hagar, há muitos arbustos sob os quais são depositadas as últimas esperanças; muitos caminhos em cujas margens alguém pode assentar-se, chorar e esperar pela chegada do fim. Há muitas promessas caídas no esquecimento durante o tempo de espera. Mas há, acima de tudo isso, um Deus-que-vê o aflito, um Deus-que-ouve o clamor do que desfalece. E ele é capaz de desbloquear o olhar do abatido e levantar-lhe o vigor para caminhar até a fonte das águas frescas.
De fato, aquele foi muito mais do que um odre cheio de água.


Um comentário:

  1. É,realmente aprendemos uma grande lição com a história de Hagar.O Deus que ouve e que fala é especialista em transformar o caos em bençãos!!!

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